No sábado passado, 11 de setembro, morreu, aos 86 anos, Abimael Guzmán, líder do Sendero Luminoso, principal grupo guerrilheiro peruano. Desde 1992, ele cumpria prisão perpétua, após ter sido preso e exibido em uniforme listrado, no interior de uma jaula. Alberto Fujimori, então presidente da república, mostrava o resultado de uma das suas principais metas, a de vencer o terrorismo; desejava fazer isso como se fosse uma cena de cinema. Que a evocação a um esquema do entretenimento se coloque para apresentar um detento – o que temos na memória imagética? Os Irmãos Metralha? –, não deixa de chamar a atenção. No Brasil, também tivemos um exemplo recente de recurso à indústria cultural, quando a Marinha fez uma manobra de treinamento ao som da música-tema de Missão Impossível e com transmissão da TV Brasil.
Há trinta e oito anos, também em um 11 de setembro, houve um golpe militar no Chile, que depôs o presidente socialista eleito Salvador Allende. Tortura, medo, assassinatos, foram a tônica do que começou com aquele dia maldito que viu o Palácio de La Moneda ser bombardeado, ao que se somou não só a destruição de um projeto de justiça social – tão importante para o país, quanto para a América Latina –, mas a instituição, ao longo dos anos, do modelo neoliberal mais cruel. Inaugurou-se com Pinochet a combinação macabra entre reacionarismo social e político e liberalismo econômico, mais ou menos como gostariam que acontecesse no Brasil – e que acontece, ainda que de forma mais que caricatural.
São duas as décadas que nos separam no 11 de setembro mais famoso, o do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, por meio de dois aviões comerciais sequestrados e feitos de mísseis, uma vez levados a se chocar com os espigões que eram símbolo da cidade. Complexo de edifícios batizado com nome que alude um local de transações econômicas mundiais, acabou se tornando o marco zero de uma ordem que, se não se desliga daquela que tinha a Guerra Fria como seu denominador, apresenta características muito peculiares. A revanche estadunidense, animada pela disputa pelo Oriente Médio, como já acontecera anos antes na Guerra do Golfo, deixou sequelas e feridas, o que inclui a barbárie de Abu Ghraib e Guantánamo.
Foi também em um 11 de setembro, mas há 118 anos, que em Frankfurt, Alemanha, nasceu Theodor W. Adorno, que escreveu um bocado de coisas sobre educação e sua tarefa de resistir à barbárie. Na metade dos anos 1960, o nome do indizível era Auschwitz, mas também o massacre dos armênios que a Turquia até hoje nega haver existido. A preocupação do filósofo era, no entanto, mais ampla, a da reincidência do que há de pior porque as condições que o geraram seguiam vigentes. Entre elas, os pressupostos do fascismo.
Há algo que unifica esses quatro momentos, afora a efeméride de que aconteceram na data que, como as outras, se renova a cada ano. Adorno evocou a urgência da reelaboração do passado, de tomá-lo de forma consciente para que possa haver justiça com a história e com quem a realizou, para que estes não sejam apagados daquela, para que os algozes não passem sem punição. De outra forma, não só a injustiça perdura, mas o que passou se mantém como constante ameaça. Quem vive no Brasil saberá identificar como isso acontece entre nós.
Não sou dos que pensam que as insurreições latino-americanas contra governos ditatoriais ou autocráticos foram ilegítimas, muito pelo contrário. Mas, travestido de esquerda, uma parte dessas iniciativas foi simplesmente terrorista (tiranizando, sequestrando, roubando e matando populações vulneráveis), ainda que não mais, ressalte-se, do que tipos como Fujimori, em cujo governo houve quem fosse condenado à prisão perpétua de forma sumária e com juízes encapuzados. Ou como Pinochet, ou George Bush e sua terrorista guerra contra o terror.
Os efeitos de tudo isso são vistos hoje, e o recente resultado das eleições no Peru não me desmentem. Keiko Fujimori, a filha do pai, por muito pouco não alcançou a cadeira presidencial. Enquanto isso, o Chile, de muita concertación e pouca transformação, se debate de forma violenta contra a dilapidação do patrimônio público e o abandono dos mais pobres à própria sorte. Quanto aos Estados Unidos, acabam de relegar ao mundo mais um problema de grande monta.
Eis uma tarefa da qual a educação não pode se furtar, a da consciência histórica. Esta parte do presente, já que é de nossa experiência que se trata, mas se volta ao passado, sem condescendência ou autocomiseração. Educar para uma sensibilidade democrática supõe que a escola rivalize com a indústria cultural, renunciando ao espetáculo que entorpece, excita e faz esquecer. Não, a história não tem trilha sonora de Missão Impossível. Ao contrário, é com o possível (o utópico, portanto!) que ela opera. Aliadas imprescindíveis para isso são a crítica e autocrítica radicais, sem as quais não há como escapar do labirinto do trauma. Para exercê-las é preciso ter coragem.
Para saber mais:
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2020. (Tradução de Wolfgang Leo Maar).
11 de Setembro – projeto com 11 filmes de curta-metragem, dirigidos por Ken Loach, Samira Makhmalbaf + nove cineastas (2003).
Imagem de destaque: Pedro Encina – Palacio de la Moneda, Chile, 11 de Setembro de 1973.