Notas sobre a fluidez da cultura do estupro – Sandro Santos e Joaquim Ramos

Notas sobre a fluidez da cultura do estupro

Sandro  V. S. dos Santos

Joaquim Ramos

“[…] A gente não está com a bunda exposta

na janela pra passar a mão nela” (É –Gonzaguinha).

Como vimos afirmando em publicações anteriores, quando nossa compreensão e racionalidade já não se mostram eficazes na leitura dos acontecimentos brutais do cotidiano, por estarem esgarçadas frente à liquidez da modernidade – como diria Bauman (2001) – recorremos então (como de praxe) à música e à poesia como forma de construirmos novas formas de saber/sentir a realidade em nosso entorno. Temos percebido que apesar de arte em si mesma ser insuficiente para aplacar a dor do mundo, ainda sim representa uma das possibilidades para amenizar aquilo que assola o peito. Nessa luta incessante, as artes – como aparatos estéticos e sinestésicos – constituem lentes possíveispara ajudar o homem, como diria Drummond, “amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar […]”.

Nos últimos tempos, temos presenciado diversos acontecimentos tanto em âmbito social quanto político que têm nos deixado, no mínimo, estarrecidos – para utilizar um eufemismo. Tais ocorrências, em forma de assombros nos impactam por incidirem sobre as experiências das mulheres brasileiras. Tentando compreender melhor esse cenário, buscamos, na obra de Pablo Picasso, inspiração para discutir a questão dos corpos femininos na atual conjuntura política e social de nosso país.]

No quadro “Mulher diante do espelho” (1932) – obra expressiva do movimento cubista – o artista transforma o corpo humano em um grande arabesco, quase como se quisesse representá-lo como uma peça ornamental.

A riqueza da obra é expressa não só pelos traços típicos de Picasso, mas também no esplendor das cores utilizadas pelo artista. Nesse quadro, curvas e elementos circulares são utilizados para representar tanto o rosto, quanto os seios e as nádegas da mulher, que constituem verdadeiros elementos eróticos em um universo figurativo e pictórico no qual o espelho (também circular) aparece como elemento central.

É emblemática a expressão triste e deprimida (quiçá, deprimente) da mulher. Além da expressão de sentimentos ambíguos, outros elementos – representados pela cor azul e pelo reflexo da face feminina no espelho – sugerem choro e dor. A polissemia constitutiva da obra de arte possibilita uma leitura, dentre várias, que aponta para o fato de que esse reflexo representa o verdadeiro estado psicofisiológico da mulher, que aparenta ter vergonha (De quem é? Ou do que lhe ocorreu, talvez?), escondendo, desse modo, seu verdadeiro estado emocional.

O que a obra “mulher frente ao espelho” representa de fato? Em que ela nos ajuda a compreender a questão das mulheres numa sociedade como a nossa? Cumpre aqui explicitar que, em tempos de exposição de corpos, seios e nádegas se apresentam como objetos do desejo, do erotismo e da apreciação estética (corpórea) para ambos os sexos. Desse modo, a leitura da obra nos permite discorrer sobre os modos, como em nossa sociedade patriarcal e machista, os homens têm (para além de desejado) violentado os corpos femininos (o que tem sido nomeado de modo vexaminoso de cultura do estupro).

Há poucos dias, ficamos estarrecidos e sensibilizados com a notícia do estupro coletivo de uma garota de 16 anos, numa comunidade carente do Rio de Janeiro (RJ).  Esse ato foi executado por 33 espectros de machos que, aqui, não terão o tratamento de homens. O palco do crime foi a comunidade intitulada de Morro do Barão – e esse nome não poderia ser mais propício para a construção de uma metáfora patriarcal: o nome da comunidade ilustra a histórica violência sexual sofrida por mulheres negras escravas nas mãos de senhores de engenho e afins. Não bastasse o horror e a barbárie desta ação, esses “caras” ainda postaram tais atos horrendos em redes sociais, num show de horrores que retroalimenta uma sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) como  a nossa. Uma diversão sádica que promove, mais uma vez, a banalidade do mal, tal como discutimos em publicações anteriores.

Assim como naquele texto, compreendemos que as atrocidades ocorridas em nível micro social têm suas gêneses em macro acontecimentos. De fato, Picasso assertivamente expressa em seu quadro a depressão da mulher frente ao espelho (depressão essa que assolou parte significativa da sociedade brasileira – pelo menos, as pessoas mais sensíveis).

O crime gerou uma profusão de sentimentos na opinião pública – tanto daqueles/as que repudiaram o ato e pautaram o debate (extremamente relevante e necessário) sobre a cultura do estupro que se dissemina e se desenvolve por longos períodos históricos em nossa sociedade quanto daqueles/as que culparam a jovem pelos atos abomináveis cometidos pelos “trinta e três”. O caso tomou proporções internacionais, como se não bastasse a péssima repercussão na mídia internacional do estupro coletivo causado na democracia brasileira por nossos deputados (também delinquentes?) e que prossegue tramitando no senado federal. Para variar, o crime contra a jovem mobilizou opiniões e notas de repúdio por todo o mundo. Resultado: foram aprovadas no congresso nacional penas mais fortes contra o crime de estupro. A questão que se nos impõe nesse momento é: penas mais intensas se tornam eficazes no combate à agressão e ao abuso sexual, se contribuímos (todos/as quase sem exceção) para a disseminação dessa cultura que promove o estupro e um sem número de outras violências contra a mulher? O que este governo de plantão está fazendo com a educação, por exemplo, não está na contramão de resolver o problema? Discutir educação com um sujeito como Alexandre Frota – caricatura maior da masculinidade hegemônica e indivíduo que faz apologia ao estupro – irá contribuir para minimizar outros tantos tipos de estupros?

Em outro texto (em forma de desabafo pela indignação com o estupro coletivo) produzido por Luciano Mendes de Faria Filho e publicado no blog do Pensar a Educação está dito que, apesar de haver significativos avanços no que concerne às políticas públicas de proteção e emancipação das mulheres nos últimos tempos, a situação feminina na sociedade brasileira ainda é dura e está longe de ser resolvida. Faria Filho argumenta que, de modo geral, todos/as nós, de um jeito ou de outro, educamos meninos e meninas para a naturalização da violência masculina contra a mulher. Nas palavras de Luciano Mendes:

A pressão pública pela punição exemplar daqueles que comentem tais atos é de fundamental importância, mas está longe de resolver a questão. Pouco adiantará punirmos os sujeitos violentos hoje se continuarmos formando, desde crianças, homens e mulheres que naturalizam a violência masculina e têm dificuldade de afirmar e viver outras masculinidades, mais cuidadosas e solidárias e não violentas (FARIA FILHO, 2016).

Embebidos na lucidez dessas palavras, ponderamos sobre o fato de que, realmente, ninguém educa um menino (seja aluno ou filho) com o objetivo de que ele se torne, futuramente, um estuprador. Contudo, é perceptível que desenvolvemos, principalmente nas crianças do sexo masculino, um sentimento de superioridade em relação às meninas e isso por meio de pedagogias tácitas, sutis e, muitas vezes, disseminadas de modo inconsciente tanto por homens quanto por mulheres, inclusive pelos/as profissionais da educação. Nesse processo de socialização, não percebemos aquilo que habitualmente fazemos e que pode contribuir para transformar meninos (e também meninas) em pessoas que praticam ou compactuam com a violência contra a mulher.

A sexualidade dos meninos, desde bem pequeninos, é sempre muito pública e explícita, o que se estende para suas vidas adultas – enquanto homens. Tomemos como exemplo uma situação simples e corriqueira do nosso dia a dia: se saímos com um menino pela rua e este nos pede para fazer xixi, não hesitamos em baixar suas calças, permitindo que ele urine ali mesmo, publicizando sua sexualidade. Entretanto, não fazemos, em hipótese alguma, isso com as meninas, nem de maneira negociada. Procuramos de modo tão breve quanto o possível, o banheiro mais próximo para que, no âmbito da reserva de seu corpo, ela satisfaça essa necessidade humana.

Na socialização de meninos e meninas, por muito tempo educamos essas últimas, fazendo-as as principais responsáveis pelos usos e abusos realizados por terceiros em seus corpos – como vimos nas redes sociais as pessoas (inclusive algumas mulheres) culparam e ainda culpam a jovem pela violação coletiva de seu corpo; incriminando-a pela atitude vil dos 33 bárbaros escusos. Assim, se Picasso ao retratar em formas arabescas as dimensões corpóreas que representam elementos de desejo masculino sobre os corpos femininos, o estado emocional da mulher frente ao espelho (expresso na tristeza e depressão de sua fisionomia) proclama igualmente nosso sentimento de indignação com tais declarações que buscam culpar a vítima desse ato aterrorizante e assombroso.

E não apenas de modo diretamente focalizado na socialização de meninos e meninas encontramos contributos que promovem a fertilização da cultura do estupro. Em nosso cenário macro político, percebemos diversas nuances que contribuem ativamente para a disseminação de uma dita cultura da superioridade masculina (que prevê a naturalização do estupro e de toda forma de violação sexual e física contra as mulheres).

Como bem vimos, nos acontecimentos que antecederam ao golpe de estado implantado em nossa jovem, frágil e indefesa democracia, cenas que já se conformavam como o prelúdio desse estupro se disseminaram pelos postos de gasolina país a fora – o que foi muito bem discutido na edição nº 116 do Jornal Pensar a Educação em Pauta de oito de abril de 2016 por Claudio Márcio Oliveira. Nesse texto, o autor se propôs discutir a centralidade dos corpos nos ataques políticos partidários realizados em todo o país, denunciando como a figura corporal da presidenta Dilma Rousseff foi associada, de maneira obscena, aos tanques de gasolina dos veículos automotivos.

Um adesivo com a imagem de um corpo feminino de pernas e abertas e vagina “supostamente” exposta foi associado, de modo no mínimo grotesco, ao rosto da presidenta e colado na entrada dos tanques dos carros. A ação realizada pelos frentistas ao introduzir o bico da bomba de gasolina na entrada do tanque possuía o

decalque, simulava uma penetração – o que caracterizava no plano simbólico um estupro (reiterando: não só do corpo da presidenta Dilma, mas igualmente um estupro desferido contra a nossa jovem democracia brasileira e igualmente contra todas as outras mulheres). Segundo Claudio Marcio Oliveira:

Dilma, que foi torturada na ditadura militar, foi há bem poucos meses vítima de estupro em uma série de veículos automotores circulantes no território nacional, a partir de um adesivo colocado junto à entrada da bomba de gasolina. […] O estupro desejado de Dilma não é o estupro apenas do “inimigo”: é o estupro de todas as mulheres, ao se entender que sob certas circunstâncias tal prática seria aceitável, admissível e até desejável (OLIVEIRA, 2016).

A cultura do estupro se dissemina em imagens como esta, repleta de simbologias que apontam para o fato de que o corpo feminino é algo que qualquer homem, de qualquer modo e em qualquer circunstância pode violar, agredir e usar indiscriminadamente. As imagens não mostram seios e nádegas, mas a vagina – expressando uma sádica possessão masculina, em que tanto faz introjetar o pênis ou o gatilho de uma bomba de gasolina. Aqui, ao contrário do erotismo expresso na pintura de Picasso, abre-se espaço para a disseminação da misoginia, da covardia e do desrespeito.

Do nosso ponto de vista, se essas imagens já denunciavam esse estupro contra a democracia, a memorável cena do “Tchau Querida” na câmara dos deputados reitera nossa perplexidade com a capacidade masculina de ultrajar as mulheres – anteriormente, chamadas de minorias. Paradoxalmente, esse “Tchau Querida” foi proferido pelo Deputado Federal Jair Bolsonaro (PSC) que se intitula “defensor da família” e que, contradizendo os princípios fundantes da “tradicional família brasileira”, exaltou (por meio de brados retumbantes) o nome do Coronel Brilhante Ustra, um dos principais algozes da presidenta e um dos inúmeros torturadores e estupradores que protagonizaram os anos de chumbo do regime militar.

Na contramão da evolução humana, reforçando o papel subalterno da mulher – que segundo um dos principais veículos de informação de nosso país deve ser: “bela, recatada e do lar” – a nova composição do quadro ministerial do novo governo, não dispunha de nenhuma figura feminina nem tão menos de outras minorias à margem da cena sociopolítica de nossa nação – o que expressa a misoginia que impera em nossa atual política partidária nacional, que não deseja nem tão menos permite a participação feminina na esfera pública (embora existam campanhas do ministério público para que as mulheres sejam inseridas em, pelo menos, 10% das vagas do senado e da câmara dos deputados).

Não bastasse tudo isso, cumpre ainda trazer à tona as declarações do Senador Romero Jucá (PMDB) – um dos principais articuladores políticos do governo interino (e ilegítimo) – em sua página do Facebook se vangloriando da posição misógina do novo governo. Dizia ele: “Participando da primeira reunião ministerial. Muitos condenam a ausência de mulheres, mas sem elas a reunião fica muito mais objetiva e produtiva, afinal, o Brasil não tem tempo a perder”.

Tais acontecimentos comprovam nossa hipótese de que a cultura do estupro, da misoginia e da violência contra as mulheres é muito maior, muita mais fluida e silente do que imaginamos. Acenam, ainda, para algo muito mais devastador que começa a tomar a cena política e social de um país que se sente, hoje, mais do que nunca, refém de “machos” sem escrúpulos, sem caráter e sem razão. “Machos” que não se intimidam em violentar simbólica e fisicamente tudo aquilo que não é espelho.

Portanto, é necessário rebelar contra essa cultura estúpida e cretina de supervalorização de homens em detrimento à condição feminina (seja no âmbito das micro relações que vivenciamos junto às crianças, seja no âmbito das macro relações políticas do nosso país). Assim, contribuiremos para a construção de relações sociais mais igualitárias, nas quais homens e mulheres, meninos e meninas se complementem mutuamente, formando arabescos humanos que refletem e respeitem a diversidade.

 

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