Estacionado entre esquinas estreitas, o trem aguardava trilhos. O peso colorido do ferro e do madeirame disputava brilhos. Tinta fresca denunciava as demãos de orgulho. Tradição e orgulho: duo de sombras indetectáveis a olho gordo. Olho nu tem poder de filtro. Olho gordo fecha a campana da reflexão crítica no fundo falso da retina. São assim desde que instituíram o poder do autoconvencimento. E da persuasão alheia. Alheia, mas eficaz. Tanto quanto a presença incólume daquele trem impoluto. Limpo de novo. Sobre a caldeira besuntada trazia uma águia. Torneada em bronze, abria asas e empinava o longo bico.
— Não é uma águia. É um condor.
— Não existem condores por aqui. Esse é um trem americano.
— Estamos na América. Dã!
— É… parece uma Balduína.
— Maria-Fumaça. Balduína é uma trágica inversão.
— Criatividade do povo.
— Deturpação.
Apertavam-se as esquinas estreitas. Assomava uma multidão. Linhas de esquina são trágicas e egoístas. Parecem vir e ir ao mesmo tempo em que permanecem imóveis. São lugar de achados e despachos. De Esù ao vigário, de enamorados a encrenqueiros, de términos a encontros, de traição a nascimentos sem testemunha. Tudo acontece entre esquinas: cruzamentos de santos e demônios – cada qual ao gosto do freguês, ou da tradição. Não seria diferente naquela ali, não fosse o vistoso trem aguardando trilhos.
— Maria-Fumaça! Sim senhor. Maria-Fumaça.
— Balduína!
Orgulho e tradição. Duas bocas que alimentam o inferno das almas livres. Todas as almas carregam o próprio inferno. Especialmente as livres. Essas carregam o próprio mais os impostos. Mistura de danações.
Ao cair da tarde, deixando-se saber que o trem amanhecera ali, alguns ouviram o apito longo.
— Piuiiiiiiii! Piuiiiiiii! Piuuiiiiiiiiiiii!
— Não! Não mesmo! Tuuuuuiiiiii! Tuiiiiiiiiiiiiii! Tuiuiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Outros, coçaram o nariz incomodado pela fuligem que saía da chaminé.
— Fuligem de fôlego velho.
— Caldeira antiga, meu filho.
— Nada disso! Por fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento. E entenda quem quiser.
— Não uso chapéu.
— Carapuça!
— Coisas da carochinha!
— Carrocinha, meus senhores. Carrocinha!
Mas aqueles que, seguindo o costume, não viram, não ouviram e nem coçaram o nariz, trataram de tratar o evento.
— Coisa absurda! Ilusão de lógica.
— De ótica!
— De lógica, camarada. De lógica!
Enquanto os memoráveis tratavam do intratável, a Balduína-trem-Maria-Fumaça mostrou-se tensa, frígida, odorante. Quando as crianças, quase sem medo – quase, porque criança de hoje já nasce com medo na cacunda – tentaram empoleirar-se nos degraus convidativos, sentiram a retração na madeira pintada. Sensíveis, encolheram o pé. Mas não as antenas. Encarapitadas nos paralelepípedos, fugindo das mãos das mães receosas, as crianças lançaram iscas.
— Pai, trem tem pé?
— Que conversa fiada, meu filho. Desce daí!
— Não desço.
— Desce!
— Não estou subido!
— Fala direito moleque!
— Mãe! Trem tem mãe?
— Credo, filho! Trem não é gente, menino.
— Esse é!
A conversa ganhou tripas. Encheram-se as vísceras com toda a sorte de especulações. Mas trilho que fosse bom, não cabia ali. Mover o trem virou caso de polícia. Fizeram BO. Lavraram ata. Desiderata – poema de um trago só. Os intocáveis, ou memoráveis que tratavam do intratável, optaram por desfazer-se do trem. Planejaram o desmonte com arrimo de consciência. Parafuso a parafuso seria retirado daquele impedimento obsoleto. A esquina, estreita e de passagem obrigatória, era o melhor acesso para o centro comercial da cidade. Já deserto e cheirando a galochas.
Que se desse à obra a primazia das urgências.
— Isso é tautológico.
— Tautológico é o avô de seu avô.
— Esse é o tataravô.
— Nono! Nono!
Na órbita dos acontecimentos intratáveis, o trem Balduína também Maria-Fumaça, descarrilou nome aos bois.
— Pai, trem fala?
— Vou lhe dar uns tabefes, menino.
— Tablefes!
— Tabletes, irmão! Compra dois?
— Mãe…Maria-Fumaça é nome de menina?
— Que absurdo, menino! Isso é pergunta que se faça?
— Laça.
— Traça.
Maria, que era trem com dedo em Baldwin, saiu dos cilindros. Cansada da boçalidade, aderiu ao sistema da inflexão. Resfolegou mágoas diante da insensibilidade coletiva e reverteu a contagem. Aquela esquina já fora lugar de expressão. Malditas ou não, as linhas estreitas guardavam histórias. Mazelas. Murmúrios dos perdidos. Músicas. Poemas de meia-noite. Poesias de adultério. Gozo de nubentes. Iguarias de destinos premiados. Desafortunados. Miseráveis. Dos infortúnios fizeram lápide. Da música deram esquecimento. Das poesias…
— Por onde anda a poesia?
— A imaginação comeu.
— Por onde anda a imaginação?
— No bolso do poeta.
— Por onde anda o poeta?
— Poetas não andam. Deslizam. Eles estão por aí…. Sempre estão!
Emudecida, a imaginação pediu trégua.
CONTINUA…na próxima edição.
Imagem de destaque: Vitorino José Moreira Neto / Pixabay