“Sim”. A poesia precisa desta palavra para existir. Na arte da dúvida, do escorregadio, da abertura, do inconcluso, do sem limites, da plasticidade, é preciso estar aberto à corrida com os lobos.
A brincadeira é o seu motor principal: brincar com palavras, subverter, inverter e converter. “Poesia é voar fora da asa”, como bem diz seu Manoel (de Barros). E é uma prática para qualquer um.
Dizer em metáforas é uma condição que andamos perdendo em meio a toda essa “estetização do mundo” (Lipovetsky & Serroy, 2015); falsa estetização, porque sempre alegre, kitsch. Da estética da palavra, passamos à estética dos objetos. A força do capital torna infinitas as possibilidades para se vender de uma escova de dentes a um loft em New York.
Os objetos, todavia, não falam, são mudos. Nós não somos objetos, mas andamos objetificados: nossa pose nas redes deve ser alegre e o ângulo da foto precisa nos favorecer, porque é aí que estaria a nossa verdade. É no olhar do outro, prisão claustrofóbica certa, que temos constantemente procurado nos encaixar. A nossa estética não é livre, nem libertária, mas dita sem palavras.
Ah, as imagens… para quê metáforas escritas se temos o frenesi das imagens a nosso dispor? Afinal, somos modernos, pós-modernos, hipermodernos ou não? As imagens têm o grande poder de nos deixar mudos e de evitar o fascínio com a nossa própria imaginação. Especialmente quando não sabemos ao certo o que fazer com elas… Como lutar contra a cegueira e a mudez das imagens?
Leitmotiv
(Clarissa de Figueirêdo)
Ante o mistério
Ante a saudade
Ante a lembrança
E alumbramento.
Ante o desejo
o medo
a tortura
– antes de tudo
na monotonia.
Ante a alegria
Ante o silêncio
Ante o eterno
e mais tenro.
Ante o mistério
Ante o absurdo
Ante o impulso
escrevo.
Lutar com palavras, escrever, reescrever, sobrescrever, inscrever, descrever, transcrever. Fazer, enfim. Aproveitar que Platão nos expulsou da república, porque não éramos a verdade, para sermos a verdade, enfim.
“Literatura é experiência”, disse-me uma vez o professor José Helder Pinheiro. Fazer experienciar a poesia talvez seja o melhor modo de construir a nossa própria estética, a estética que nos equilibra no mundo. O encontro com o outro é também alimento, mas não deve se sobrepor ao encontro consigo, pois é aí que mora a poesia.
Virão as pandemias e, talvez, um apocalipse zumbi, mas as metáforas estarão a salvo nas nossas cabeças – assim como no romance distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, com as “mulheres-livro” e com os “homens-livro”. Sem medo, daremos a César o que é de César:
Ó César
(Ana Paula Inácio)
não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soap
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer
A poesia como prática de leitura ou de escritura, deste modo, faz com que o vazio preto de uma tela seja apenas o que é, não se confundindo com o nosso próprio vazio. Afinal, “no princípio, era o verbo”.
Referências
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
FIGUEIRÊDO, Clarissa de. Corpo Púlpito. Recife: Cepe, 2015.
INÁCIO, Ana Paula. 2010-2011. Portugal: Averno, 2011.
LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
PINHEIRO, José Helder. Poesia na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2018.
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