Memórias do início da vida escolar (continuando)

Elaine Teixeira Pereira

Durante os primeiros anos de vida, fui uma criança que conviveu basicamente com adultos. Morava com meus avós maternos e, parte do tempo, minha mãe juntava-se a nós. Eventualmente brincava com crianças de casas vizinhas. Aos cinco anos tive uma efêmera passagem pelo pré-escolar, mas minha vida em outro espaço social, além da casa, começou realmente quanto entrei na 1ª série.

Estudava em uma escola reunida que tinha duas salas de aula e que oferecia as quatro primeiras séries do 1º grau (uma turma de cada, distribuídas nos turnos matutino e vespertino). Havia também uma sala separada, mais antiga, construída em madeira, onde funcionava a turma do pré-escolar. Junto a ela, tinha uma cozinha. Pelo que me lembro, esse espaço era território de uma das professoras, que, além das atividades docentes, era a responsável pela escola, fazendo às vezes de diretora. Havia mais uma ou duas professoras, não sei ao certo. Depois de um tempo, a escola ganhou uma cozinheira, que ficaria responsável pelo preparo da merenda das crianças (e por cuidar da limpeza da escola?). Com isso, a professora que acumulava as funções passou a cuidar “apenas” da docência e da direção da instituição.

Acho que foi nesse período que comecei a me dar conta da importânciada escola. Minha avó falava com frequência sobre essa importância, sobre como é bom gostar de ler, de estudar, de “saber as coisas”. O fato de aprender e ir bem nos estudos estava ligado, em suas considerações, com a possibilidade de “ser alguém na vida”, de ter um futuro (leia-se, bom e feliz).As afirmações sempre vinham acompanhadas de um certo lamento, já que eram feitas por alguém que tinha “apenas o 3º ano primário”. De todo modo, o que era dito por minha avó ressoava como uma espécie de profecia. Afinal, como ela estaria errada? Esse era um tempo em que não era incomum as crianças verem os adultos (especialmente alguns deles) como aqueles que sabiam as coisas e diziam exatamente como o mundo funcionava. Nada de duvidar, de relativizar. Isso viria depois.

Ingressar na 1ª série trouxe muitas novas experiências. Além de conviver com aquelas pessoas todas e ter que me resolver (quase) sozinha, havia também o que a professora ensinava. Os primeiros dias eram de certa ansiedade, pois ficávamos unindo linhas pontilhadas e fazendo contornos durante grande parte do tempo. Eu não entendia porque não podíamos aprender a ler de uma vez. Mas ficava quieta e continuava a fazer os exercícios.

Numa bela tarde, chegou a vez de aprendermos o “A”. Além do quadro negro (aliás, verde), companheiro diário nas aulas, um outro quadro, feito pela professora em papel pardo e com letra lindamente desenhada, compunha o espaço da sala de aula. Este não nos deixava esquecer as letras que havíamos aprendido. Era também o local onde as demais iam sendo, uma a uma, apresentadas. Após passarmos pelas vogais, foi a vezdas consoantes e das “famílias” dessas letras. O quadro foi ficando mais interessante, porque composto por mais elementos.

Nessa forma de proceder, havia tardes mais especiais que as outras. Eram as dedicadas a uma nova letra, o que ocorria após a anterior e sua “família” terem sido (ao menos em tese) aprendidas por todos. Lembro-me especialmente de uma dessas tardes. A professora perguntou se sabíamos qual seria a próxima letra, a que passaria a fazer parte de nossa pauta. Eu não fazia a mínima ideia. Como alguém, além da mestra, poderia saber? Mas, eis que uma colega se pronunciou. Para minha surpresa, ela sabia.

Achei o máximo! Como ela poderia prever o futuro? Saí da escola ainda com a questão e comentei com os adultos de casa. A explicação me impactou efez com que a colega passasse de um lugar privilegiado a outro, bem diferente: ela havia cursado a 1ª série no ano anterior e sido reprovada. Acho que a partir daí as contradições e injustiças que permeiam a escola foram sendo, em doses homeopáticas, apresentadas a mim – e é claro que nem sempre tinham como protagonistas “apenas” meus amigos e colegas.

O início de minha vida escolar foi marcado, obviamente, por muitas situações. Recordo apenas algumas delas – situação previsível, uma vez que a memória opera com seleções e esquecimentos. Hoje, tendo outra condição de analisar o vivido, percebo que tive um ensino bastante tradicional e que me proporcionou menos do que poderia e deveria: em que a professora ensinava e nós aprendíamos; no qual os testes de prontidão tomavam o início da 1ª série e antecediam qualquer prática de escrita; onde éramos alfabetizados começando pelas letras, passando pelas sílabas, palavras e, um dia, (talvez, para os que sobrevivessem) as frases e textos curtos; onde as chineladas e varadas quando não nos comportávamos ou quando não sabíamos a lição eram uma prática entre a maioria das professoras (foi assim até minha 3ª série); em que o livro didático era visto como algo a ser rigorosamente seguido; onde decorávamos as lições e tínhamos os chatos textos a serem copiados do quadro. Alguns deles, inclusive, eram repetidos todos os anos, nas datas de comemorar “os heróis”, e sempre me causavam angústia, pois achava muito difícil ficar atenta e copiando do quadro sem parar (invariavelmente eu me atrasavanessas situações e perdia parte do conteúdo).

Apesar de saber que essa fase inicial de minha vida escolar poderia ter sido marcada por um aprendizado maior e com mais sentido, tenho boas lembranças. Afinal, foi a época em que transformei numa espécie de poesia a história dacentopeia Lia–uma personagem verde, com muitas pernas e de laço rosa na cabeça, que abria o livro didático da 2ª série. Uma história que ressoa ainda hoje, repleta de musicalidade e muitas cores.

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