Muitos consideram o padre José de Anchieta, catequizador do século XVI, o introdutor do teatro nacional. Dentre as suas poucas obras, influenciadas pelo teatro de Gil Vicente, destaca-se o Auto na festa de São Lourenço. Entretanto, o teatro anchietano é mais didático (catequético) do que propriamente literário. Com o desaparecimento do padre José de Anchieta, o teatro no Brasil praticamente também desaparece, só reaparecendo no século XIX, época do Romantismo, quando poetas e romancistas se sentem motivados a escrever peças de teatro, já que, com a fixação de D. João VI no Rio de Janeiro, surgem as primeiras construções para a encenação dessa bela arte. Entretanto, é com o romântico Martins Pena, introdutor da comédia brasileira (1838), com o Juiz de paz na roça, e, posteriormente, com Artur Azevedo (A capital federal) e França Júnior (Como se fazia um deputado), ambos do nosso Realismo, que o teatro se consolida em nosso país. Já no século XX, principalmente na década de 30, dois autores inovam, fortalecendo-o ainda mais: Nelson Rodrigues, autor de Vestido de noiva, e Joracy Camargo, autor de Deus lhe pague. Na geração seguinte, isto é, a de 45, destacam-se, autores como Dias Gomes (O pagador de promessas), Gianfrancesco Guarnieri (Eles não usam black-tie), Pedro Bloch (As mãos de Eurídice), Jorge Andrade (A moratória), Plínio Marcos (Dois perdidos numa noite suja), Maria Clara Machado (Puft, o fantasminha), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida) e Chico Buarque (Calabar, em parceria com Ruy Guerra) são os grandes destaques.
O teatro de Martins Pena
Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro em 1815. Na mesma cidade, estudou na Academia de Belas-Artes. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura, tornando-se o primeiro comediógrafo brasileiro ao escrever em 1833 a peça O juiz de paz na roça e levada ao palco em 1838. Martins Pena teve o privilégio de ver as suas comédias encenadas pela companhia de teatro do grande ator João Caetano, desejo de vários escritores do Romantismo brasileiro. Martins Pena morreu em Lisboa, em 1848, aos 33 anos de idade.
Com raras exceções, como O noviço (peça em 3 atos), as peças de Martins Pena possuem apenas 1 ato. Considerado o Molière brasileiro (referência a Jean-Baptiste Poquelin ou apenas Molière – 1622-1673 –, dramaturgo francês que se destacou na comédia satírica), Martins Pena retratou em suas comédias a vida e os costumes do Rio de Janeiro de sua época. E sobre isso, escreveu o grande crítico literário do século XIX, Sílvio Romero: Se todos os documentos e fontes históricas nos faltassem, seria possível reconstruir a vida da sociedade brasileira tão-somente através das comédias de Martins Pena.
Dotado de uma rara visão crítica, o nosso comediógrafo colocou em cena diversos tipos que fizeram a alegria do espectador da época (vale a pena ressaltarmos que vários desses tipos estão presentes até hoje no cenário nacional), como a moça “casadoira”, a namoradeira, o golpista, o corrupto, o aproveitador, o ingênuo. Com uma linguagem coloquial (típica de uma comédia), as peças curtas de Martins Pena serviam de “refrigério” para a plateia que esperava pela trama principal: a tragédia. Foi assim que Martins Pena assistiu, orgulhoso, a João Caetano e sua trupe encenarem às suas peças, privilégio para poucos autores da época.
Toda boa comédia apresenta dois objetivos claros: o primeiro, provocar o riso na plateia com situações inusitadas e divertidas, personagens caricaturais e ridículas; segundo, tecer críticas ao comportamento da sociedade da época, com sua ambição, suas armações e seus interesses pessoais, como, por exemplo, na comédia “Os dois ou o Inglês Maquinista”, em que Martins Pena não poupou críticas ao tráfico e contrabando de escravos e ao suborno às autoridades, como juízes, por exemplo, prática ainda muito comum em nossos dias. Nesta peça, o nosso Moliére, não deixou de comentar, de maneira crítica, sobre os meias-caras, ou seja, os escravos vindos ilegalmente para o país, nos chamados navios negreiros, que conseguiam furar o bloqueio dos navios ingleses que policiavam a prática ilegal:
Felício – Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue Veloz Espadarte, aprisionado ontem junto quase da Fortaleza de Santa Cruz pelo cruzeiro inglês, por ter a seu bordo trezentos africanos?
Negreiro – A um pobre diabo que está quase maluco… Mas é bem feito, para não ser tolo. Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante carregação? Só um pedaço de asno. Há por aí além uma costa tão longa e algumas autoridades tão condescendentes!…
Felício – Condescendente porque se esquecem do seu dever!
Negreiro – Dever? Perdoe que lhe diga: ainda está muito moço… Ora, suponha que chega um navio carregado de africanos e deriva em uma dessas praias, e que o capitão vai dar disso parte ao juiz do lugar. O que há-de este fazer, se for homem cordato e de juízo? Responder ao modo seguinte: Sim senhor, Sr. Capitão, pode contar com a minha proteção, contanto que V.Sª…. Não sei se me entende? Suponha agora que este juiz é um homem esturrado, destes que não sabem aonde têm a cara e que vivem no mundo por ver os outros viverem, e que ouvindo o capitão, responda-lhe com quatro pedras na mão: Não senhor, não consinto! Isto é uma infame infração da lei e o senhor insulta-me fazendo semelhante proposta! – E que depois deste aranzel de asneiras pega na pena e oficie ao Governo. O que lhe acontece? Responda.
Felício – Acontece o ficar na conta de íntegro juiz e homem de bem.
Negreiro – Engana-se; fica na conta de pobre, que é menos que pouca coisa. E no entanto vão os negrinhos para um depósito, a fim de serem ao depois distribuídos por aqueles de quem mais se depende, ou têm maiores empenhos. Calemo-nos, porém, que isto vai longe (p.76).
O certo é que MARTINS PENA está mais atual do que nunca!
Para saber mais:
PENA, Martins. Quem casa, quer casa e outras comédias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
Imagem de destaque: Jbarta