Limites da Razão Iluminista

Joachin de Melo Azevedo Neto

Não se pode compreender o que significa razão iluminista sem uma abordagem, mesmo que breve, do próprio conceito de iluminismo. O recorte que farei aqui está fundamentado em uma recente obra publicada pelo historiador francês Roger Chartier. Um dos principais focos das pesquisas elaboradas por esse autor é analisar como diferentes sociedades, desde o alvorecer da modernidade até o contemporâneo, se relacionam com a cultura escrita. Sendo assim, quando publicou As origens culturais da Revolução Francesa, traduzida para o português em 2009, Chartier buscou estabelecer alguns pontos de ruptura com as interpretações historiográficas mais tradicionais desse acontecimento. Principalmente, com aquelas contidas no clássico ensaio As origens intelectuais da Revolução Francesa, de Daniel Mornet.

De acordo com Mornet, as ideias iluministas circulavam hierarquicamente das elites para a burguesia, daí para a pequena burguesia e, finalmente, para o povo. A difusão das ideias iluministas aconteceram do centro de Paris para o restante da França e o Iluminismo foi a principal causa da derrubada do absolutismo. Na verdade, Chartier, ao construir sua visão do conceito de Iluminismo, inverte toda a lógica do pensamento de Mornet. Para o autor de As origens culturais da Revolução Francesa, não foi o Iluminismo que ocasionou a Revolução Francesa e sim os desdobramentos da Revolução que deram uma visibilidade oficial ao Iluminismo. Desse modo, ao falar em origens culturais da Revolução Francesa, Chartier não está preocupado em elaborar uma gênese das causas desse evento, mas uma discussão na qual os desfechos sangrentos desse evento, que derrubou os pilares do absolutismo, sejam compreendidos em uma perspectiva temporal que dialogue com práticas exercidas em contextos anteriores ao do século XVIII.

Fazendo aqui um deslocamento da França até a Alemanha, Immanuel Kant, que viveu no século XVIII, pode oferecer uma explicação mais sistemática em torno do conceito de iluminismo. Em um opúsculo datado, originalmente, de 1783, intitulado “O que é o iluminismo?”, Kant é bastante categórico ao afirmar que aderir à razão iluminista é sair de uma menoridade causada pelo comodismo humano. O que Kant entendia enquanto menoridade era a falta da capacidade de os indivíduos pensarem com autonomia. Por exemplo, deixar que um médico escolha qual a melhor dieta ou que um padre designasse qual o melhor caminho religioso para uma pessoa seguir são situações escolhidas por esse filósofo alemão para atacar a maneira pacífica com a qual a sociedade europeia aceitava a ordem dominante sem questionar seus fundamentos.

Ao não raciocinar, o sujeito moderno estava abrindo mão de sua liberdade de acordo com Kant. Porém, ciente de que não poderia fazer generalizações em torno de uma suposta barbárie vivenciada na Europa, o autor postula que o século XVIII era uma época iluminista ao invés de esclarecida. Os entraves para que os europeus atingissem a maioridade ainda eram latentes: o clero ainda dispunha de ampla influência política, porém, de acordo com esse filósofo, o iluminismo estava fornecendo alguns subsídios para essas sociedades marcharem rumo ao progresso e a emancipação. Kant diz, com todas as palavras, que o século do iluminismo é o século de Frederico, O Grande: o primeiro príncipe prussiano que decretou a liberdade de culto entre seus súditos. É importante salientar que o cerne do conceito de iluminismo, portanto, para Kant, é a saída de uma pessoa de sua menoridade culpada para libertar-se, principalmente, dos grilhões impostos pela moral religiosa. Isso porque os governos absolutistas não tinham interesse em exercer uma censura muito rígida em torno das artes e da ciência nessa época. Porém, para Kant, era uma grande desonra para qualquer civilização que se pretendia civilizada continuar sendo tutelada pela Igreja Católica.

Ao escrever os Ensaios sobre os Costumes e o Espírito das Nações, traduzidos e publicados no Brasil em uma obra intitulada A filosofia da História, Voltaire recolheu o maior número possível de fatos em torno das sociedades que analisa e interpreta-os por meio da noção de racionalidade dominante entre os filósofos iluministas. Isso significa que o autor de A filosofia da História acreditava que falar em sociedades civilizadas era se referir a povos que desenvolveram progressivamente a ciência e a técnica, a moral e o direito, o comércio e a indústria. Quer dizer, em outros termos, o sucesso da obra de Voltaire se deve porque, ao romper com a história teológica de Bossuet, esse autor elaborou uma sofisticada, porém sorrateira, legitimação da ascensão política da burguesia vivenciada no século XVIII. O olhar de Voltaire, guiado pelo iluminismo, para o passado, sugere que apenas por meio da razão e livre da ignorância a humanidade poderia ser melhor e mais harmoniosa.

O Iluminismo não deixa de ter implicações religiosas ao ter depositado muita fé na crença de que poderia haver uma humanidade perfeita caso fossem abolidas as religiosidades. Sendo assim, o Iluminismo pode ser compreendido também enquanto uma moderna religião do progresso por mais que as concepções de técnica e razão defendidas pelos autores que viveram no século XVIII fossem anticristãs. Com base nessas afirmações, pode-se deduzir que a principal fragilidade dos argumentos iluministas reside em uma autoconfiança extrema no par neutralidade/racionalidade.


Imagem de destaque: Galeria de imagens

1 comentário em “Limites da Razão Iluminista”

  1. Pingback: Jornal 356 - Pensar Educação

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *