Ler um texto, Ler o mundo

Rafael Müller

Os entusiastas da literatura – aí incluo-me – correm um grande risco: de pressupor que o ato da leitura é um processo maravilhoso, prazeroso, que sempre leva a novos insights e tem uma função pedagógica importante e essencial. Entretanto, o tipo de leitura associativa só é possível com a criação de um hábito conexo, mas não automático e imediato, de ler o mundo ao mesmo tempo em que se lê um texto.

Esse ato conexo de ler o mundo é, muitas das vezes, profundamente traumático e paradoxal. Um ato de resistência, de entrar em contato com as contingências (nem sempre reforçadoras) do mundo que nos cerca, e que por vezes no tolhe e nos exige mais do que acreditamos poder entregar.

Pensar em ler o mundo me remete a fantástico texto de Ana Almeida sobre ensino jurídico. No artigo intitulado O Apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital, discute a leitura do direito por seus bacharéis e estudantes a partir dessa dupla possibilidade: de um lado, o ler estrito, superficial, senso comum, mais preocupado com as questões formais da lei e da norma; de outro, o ler associativo, científico-jurídico, preocupado com questões sociais basilares que direcionam a prática jurídica comprometida. 

A primeira abordagem é aquela que, segundo estudo da autora, permitiu que estudantes de direito ingressantes do curso defendessem o apartheid sul-africano: optavam pela condenação de um negro que entrasse em um ônibus reservado a brancos – um crime segundo o regime sabidamente racista -, “argumentando que a lei deveria ser cumprida sob pena de conivência com o caos social” (ALMEIDA, 2017, p. 871).

Ler Ana Almeida é traumático na medida em que nos choca com a realidade de que há pessoas iguais a nós que não compartilham do mesmo sentimento de igualdade entre todos. Uma pressuposição basilar, poderiam supor os entusiastas. Entretanto, a leitura superficial é mais comum do que gostaríamos. Ela é também apresentada citando-se Brás Cubas: “Não tinha outra filosofia.

Nem eu. Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma, mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Trateia-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação” (ASSIS, 1997, p. 50 apud ALMEIDA, 2017, p. 879).

Opostamente à casca e à ornamentação está o conteúdo, a essência, que não é acessado senão através da forma. A leitura associativa, portanto, extrapola a forma, a repetição acrítica, trazendo à consciência o significado de cada palavra em determinado contexto, problematizando-o. Posto em outros termos, a leitura associativa abre a mente: possibilita leituras cada vez mais amplas. Esse é o exercício de “ler bem”. Conquanto não haja leituras “certas”, uma vez que várias associações são possíveis, a “boa leitura” faz algo mais do que meramente receber palavras concatenadas e repeti-las. 

Talvez resida aí o grande paradoxo da leitura associativa: nos pune com a consciência da pobreza existencial no mundo, uma leitura reflexiva e crítica, mas ao mesmo tempo sentimo-nos reforçados para ler mais, motivados por uma esperança estranha que nos toma e da qual retiramos o prazer que a leitura, imediatamente, não nos deu. É o sentimento com o qual nos brinda Ernesto Sabato, autor argentino, na obra La Resistencia: “tengo una esperanza demencial, ligada, paradójicamente, a nuestra actual pobreza existencial, y al deseo, que descubro en muchas miradas, de que algo grande pueda consagrarnos a cuidar afanosamente la tierra en la que vivimos” (SABATO, 2007, p. 35).

O reforço positivo está no campo das relações de poder: não entre os sujeitos, no sentido de hierarquizá-los, mas resgatando o poder do indivíduo-social perante a hierarquia-individualista. E isso, talvez, por um motivo bastante simples: se o ler profundo é associar-se, será sempre, metaforicamente, coletivista e associativista. Parece haver, portanto, algo de conteúdo na própria forma de ler: ler diferentemente nos dá repertório comportamental e abertura para ser diferentemente. 

Ler o mundo (em sua completude e complexidade) só o é possível através da leitura de textos – não necessariamente escritos, literários ou científicos, mas textos em seu sentido lato. É algo associativo pois a leitura de um decorre da escritura de outrem.

Aprender a ler (o mundo) é, ao mesmo tempo, um aprender a ser e conviver.

 

Para saber mais:
ALMEIDA, Ana Lia Vanderlei. O Apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital. Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 2, p. 869–904, jun. 2017. DOI 10.12957/dep.2017.23508. Acesse aqui

SABATO, Ernesto. La resistencia. Buenos Aires: Booket, 2007.


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