Amanda Martins Batista
Pegou o spray de tinta vermelha, que marca bem a sua dor, e escreveu nos muros de sua cidade para escancarar de vez o que anda gritando aos quatro ventos: meu corpo é lindo, não me importo com o que digam as revistas! Meu corpo me pertence, independente do que eu faça!
“Vandalismo!”, lhe disseram. “Marcar os muros é marca da rebeldia e da falta de limites”, disseram em tom ríspido e categórico. Mas anos antes de ela marcar os muros de sua cidade, sua alma vinha sendo marcada com todo o lixo depositado dia e noite sobre sua existência.
Ela foi vandalizada quando disseram que seus cabelos crespos e volumosos eram ruins e errados; quando disseram que seu corpo, cheio de cicatrizes e marcado pela infância travessa, não era como deveria ser o corpo de uma moça. Foi vandalizada quando apontaram os dedos para seus vícios ignorando que eles também fazem parte de sua história. Tem sido vandalizada desde que compreendeu as primeiras palavras, quando começaram a lhe dizer insistentemente para zelar por seu corpo, para escondê-lo com panos, ferros e grades, para “se dar o respeito”.
Seu corpo tem sido vandalizado desde sempre, mesmo antes de seu nascimento. Em sua avó, que travou uma batalha épica dentro de casa para usar as calças da moda; na vizinha que criou os filhos sozinha por dizer “NÃO!” ao marido violento; na amiga querida que teve sua intimidade violada, seu prazer transformado em pânico nas mãos de um homem que carrega consigo a violência e a ignorância de uma sociedade que torna suas vítimas responsáveis por seu próprio sofrimento.
Ela é vandalizada todos os dias nos olhares desconfiados que lhe direcionam, a cada saia, salto ou pintura nos olhos. Seu batom vermelho, assim como sua tinta, expressa o poder que tomou pra si. Expressa o sangue das companheiras de luta derramado por anos, expressa a sensualidade que quer e pode exercer livremente, mas para quem ela quiser. Se hoje ela vandaliza muros, é porque há anos vandalizam-lhe a alma.