Lazer e uso de psicoativos

Sueli Abreu Guimarães

Na teia social, estigmas e preconceitos se mostram sob várias formas, inclusive, através de disfarces para incutir ideias acerca do que seja melhor ou pior na hora de distrair-se, de contemplar, alegrar-se, divertir-se, enfim, ser feliz. As razões de escolhas feitas, se autônomas, ganham sentido se observada a integralidade de cada ser, suas marcas e histórias, pois cada pessoa é única, sua forma de sentir prazer é singular. Portanto, ideais de padronização que determinam o que faz homens e mulheres regozijarem carecem de legitimidade. Uniformizar atitudes em espaços e tempos de lazer não deixa de ser uma espécie de censura, impedimento ao exercício da liberdade, obstáculo à criatividade humana e à expressão e experimentação de sentimentos e sensações com vistas à satisfação, ao prazer.

A busca pelo prazer se dá através de experiências impulsionadas pelas subjetividades, emoções, disposição física, além de muitos outros aspectos. As condições materiais e imateriais para que a satisfação seja perseguida e alcançada têm também muita relevância. Há articulação complexa de fatores e, por mais que aparente simplicidade, a decisão de ocupar verdadeiramente o tempo livre com o lazer, não o é. Portanto, não se considera legítima avaliação sobre alegria ou satisfação, ou mesmo mobilizações realizadas para alcançar estados de felicidade, sem observância à complexidade que envolve a questão. No intuito de que seja ilustrada esta relação, podem ser apontadas algumas histórias de vida de personagens de telenovelas brasileiras, uma vez que a arte imita, ou melhor, recria o real (há quem diga o contrário!).

 O enfoque dado ao consumo de psicoativos pelas telenovelas já atravessa décadas. Nos últimos anos, muitas tramas abordaram a questão: Vale Tudo (1988); Por Amor (1998-1999); O Clone (2001-2002); Mulheres Apaixonadas (2003); Páginas da Vida (2006); Passione (2010); Verdades Secretas (2015); Segundo Sol (2018); todas, apesar de enredos intrigantes e diversos, trazem personagens imersos em dramas particulares, em questões não resolvidas que os angustiam profundamente, relações socioafetivas tóxicas ou frustradas, quadro de ansiedade excessiva, “uma demasiada ocupação do presente com o futuro”, também o medo excessivo de fracassar.

Diversos fatores convergem para que haja tensão insuportável, desaguando no desejo de aliviar a dor, a angústia, o desespero, a fim de gozar de momentos de prazer e fugir do sofrimento. É o que parecem querer encontrar, no uso imoderado de psicoativos, as personagens, respectivamente, das citadas tramas novelísticas, Heleninha, Orestes, Mel, Santana, Bira, Danilo, Larissa, Manu.

A teledramaturgia ao contar histórias de vida recria momentos e circunstâncias comuns ao uso imoderado de drogas, demonstra que há relação entre tempo de lazer e consumo de psicoativos – seja em bailes, shows, boates, roda com amigos ou mesmo viagens. Tal relação, por sua vez, vem sendo explicitada por estudos científicos nacionais e internacionais ocupados em investigar o uso de drogas não somente como interações químicas entre organismo humano e substância natural ou sintética, mas também pelo viés antropológico e sociológico.

O que a ficção demonstra não nega a realidade, ainda que use formas e tons fortes para “temperar” histórias, demonstra que não é o lazer que leva o indivíduo ao uso imoderado de tal ou qual substância, mas vivências, oportunidades, (in)compreensões, construções, interações, frustrações, dramas, inabilidades dentre outros. O lazer, como outro fenômeno social, depende de consciência despertada para que escolhas possam gerar autocuidado, autorrealização, evolução, desenvolvimento humano com responsabilidade social.

Não faz sentido responsabilizar o lazer pelo uso de drogas, mas sim como tempo em que o ser se percebe menos imobilizado, menos vestido e mais favorável a reconhecer a si, o outro e o seu derredor, longe dos artifícios construídos pelas obrigações laboriosas da intensa imposição de uma vida produtiva, fabricadora de fetichismos. Leituras preconceituosas que marginalizam ou segregam quem faz uso de psicoativos precisam ser afastadas, e a primeira ação, num golpe de empatia, seria se perguntar “quem não faz uso de psicoativos? por quais motivos se propagandeia o consumo de certos psicoativos?” para, então, romper a bolha e enxergar que os tempos e seus usos são construções humanas, de modo que o lazer é tempo de intimidade consigo, de agir da maneira que lhe aprouver, sem rótulos ou prescrições.

O que seria um passo à frente, pela urgência que se apresenta, é lançar olhar mais humano sobre o uso de drogas no tempo de lazer, sem a medida repressora da moral e dos bons costumes que tanto negam a constante ressignificação do homem e o marginaliza, retirando-lhe o direito de ser mais do que aquilo que consome. A relação entre lazer e substâncias psicoativas deve sempre ser realizada com vistas a sua complexidade, importando-se, sobretudo, com um projeto de sociedade menos ocupada com estatísticas, desafeita à discriminação e à injustiça social, comprometida com o bem-estar e o desejo de cada um de “sorrir” livremente.

Sobre a autora
Doutoranda FACED/ UFBA. Membro do Grupo CORPO.


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