Lembrança

Analise da Silva

Hoje pela manhã, quando estava abrindo a janela do quarto das crias, avistei a mangueira que fica atrás do prédio vizinho ao “lote”. Não prestava atenção nela faz tempos. Mangas enormes e bem maduras já estão lá no alto. Pensei em pedir alguém para me ajudar a conseguir algumas.

Lembrei da minha infância no “fundo da horta” do “lote” e de quantas vezes passamos pela cerca (isso depois que ela foi colocada) pra ir lá pegar mangas. Tudo muito na surdina, porque se nossa avó (D. Mariinha) soubesse que estávamos no quintal dos vizinhos pegando uma fruta que havia no nosso quintal (“fundo da horta”) iríamos desejar ir de volta para o futuro em que já existisse o “ECA” para nos proteger da surra.

Na surdina, também, porque se a Adélia doida (como os adultos a chamavam), D. Adélia Doida (como nós as crianças a chamávamos), nos visse no lote, correria atrás de nós. Parênteses: Adélia era uma mulher branca mais jovem que seu marido de quem me lembro o rosto, as roupas, o jeito e o guarda-chuva, porém não me lembro do nome. Ele era um homem negro forte e alto. Me lembro de quando ia com minha avó e mãe brincar enquanto elas lavavam roupas na bica d’água que existia onde hoje é a entrada de uma Comunidade vizinha, ouvia as conversas das mulheres que se apiedavam de Adélia – Doida. Do que eu sempre conseguia inferir das conversas, Adélia também desejava que já existisse naquela época a “Maria da Penha”. Por vezes, depois de vivências análogas fico pensando se ela corria atrás de nós ou se ia ao nosso encontro para pedir socorro. Fecha parênteses.

À medida em que ia lembrando dessas coisas e rindo e chorando na janela sozinha, fui entristecendo. Fui pensando a quem recorrer para pedir pra me lembrar o nome dele, o fim que levaram, para onde ela foi quando ele morreu (me lembro que ele morreu). Parênteses: Adélia doida ficou na casa com um lote enorme. Depois, ela sumiu e ninguém mais deu notícias. Me lembro de meu avô, de seu Dadinho da Dona Áurea, do seu Luiz Peru (a gente sabia que não podia falar Peru – era um homem muito branco e quando ele ficava nervoso o pescoço e o rosto ficavam totalmente vermelhos), da Dona Mariinha e da Dona Lindaura (matriarca da rua ao lado) irem lá pra ver “Quede a Adélia Doida”, porque os cachorros estavam soltos na rua a dias e eram bravos e avançavam nas crianças e entravam nos galinheiros. Não estava mais e a casa e o lote e a mangueira ficaram lá abandonadas por muitos, muitos e muitos anos). Não tiveram filhos. Então, quem vendeu o lote deles pra empreiteira que construiu o prédio de 3 andares, 12 apartamentos e pilotis? Fecha parênteses.

Não. Não me entristeci pela lembrança da Adélia. Espero que tenha ido ser feliz, agora que livre. Me entristeci, porque eu sou a próxima. Não tem mais nenhuma das pessoas nas quais pensei olhando pras mangas ainda vivas. Nem avô, nem avó, nem pai, nem mãe, irmão, nem irmã, nem outra irmã. Nem os filhos de D. Áurea, nem os de D. Zita, nem os de D. Nanda, nem os da “Vaca Premiada” (falo disso noutra vez), nem os do Seu Ném, pai do outro Seu Ném do bar do Ném, nem os da D. Lindaura, nem os da D. Otília, nem os do Seu Geraldo dos passos, nem os da D. Maria Branquinha… para me ajudarem a contar as histórias.

Semana que vem tô viajando a trabalho. Assim que voltar, vou ver se Eliane, Sacolão, Fizim, Lilim, Meirinha, Humbertinho da Clorita, Maura ou Sônia da Grafito, Norminha… alguém me ajuda a lembrar o nome dele. Quem sabe se algum neto deles me ajude a pegar as mangas. Talvez assim eu esqueça que eu sou a próxima.

Sigamos!

Ou não.


Imagem de destaque: Acervo pessoal da autora

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