João Gabriel Maracci*
“Se o PSOL ganhar a eleição, nossas crianças vão ter [na escola] uma coisa que tinham que ter em casa: orientação sexual. Vai ter kit gay na escola e vão induzir a liberação das drogas”.
Essas palavras, proferidas por Marcelo Crivella, viralizaram na internet e se tornaram um dos mais comentados assuntos acerca de um recente debate entre candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro. Opiniões públicas sobre a afirmativa apontaram seu cunho caricato e absurdo, sendo usual a associação a expressões como “mentira” e “fake news”. De fato, sabemos que o significante “kit gay” frequentemente é acionado em uma retórica paranoica, cuja finalidade é mobilizar o sentimento de pânico sobre a sexualidade em nome de objetivos políticos. No entanto, isso não parece fazer com que ele perca sua capacidade persuasiva.
A mobilização do significante “kit gay” em circunstâncias eleitorais não é novidade do cenário atual. Desde 2012, podemos localizar, em diferentes escalas, usos desse termo em campanhas políticas ao Executivo e ao Legislativo. Desde então, talvez o enquadre mais expressivo e bem sucedido do “kit gay” tenha se dado em 2018, quando operou como um dos principais eixos da campanha vencedora à Presidência da República. Naquele momento, Jair Bolsonaro afirmava com frequência sua oposição ao “kit gay” e à “ideologia de gênero”, termos que designavam um iminente perigo que se materializaria caso ele não fosse eleito.
Mas o que seria, afinal de contas, esse tão falado “kit gay”? Podemos identificar, como início da polêmica, um material didático que compunha o programa Escola sem Homofobia, divulgado em 2011 e elaborado com verba do Ministério da Educação. O “kit anti-homofobia”, como era chamado, foi rapidamente renomeado na cena pública a partir da atuação de seus críticos, assumindo a fatídica alcunha que até hoje assombra nosso cenário político. Após grande polêmica em redes sociais e canais de telecomunicação, a presidente Dilma Rousseff acompanhou o clamor de seus críticos, vetando a distribuição do material sob o argumento de que não caberia ao Governo Federal fazer “propaganda de opções sexuais e interferir na vida privada das pessoas”. Mas isso não freou o clima de ameaça levantado pela controvérsia.
Para entendermos a amplitude e a persistência de tal significante, é fundamental retomar os debates em torno do Plano Nacional de Educação, em 2014. Nessa ocasião, um grupo de deputados se organizou para retirar do documento proposto qualquer menção às discussões sobre gênero e sexualidade, argumentando que tais temas inseririam no Brasil a “ideologia de gênero” – termo sem qualquer rigor analítico que visa a designar uma suposta ameaça à infância provocada pelo questionamento do sexismo e da heteronormatividade. Não é novidade que o clamor de tais parlamentares tenha se saído vitorioso e que o documento aprovado não faça nenhuma menção ao combate ao preconceito homofóbico e ao machismo em escolas brasileiras. Contudo, é interessante acompanhar um dos argumentos que embasaram o voto de Bolsonaro: “Este é o ‘kit gay’ que Dilma Rousseff disse que tinha recolhido, mas que está saindo do armário”.
Com essa metáfora, podemos entender que “kit gay” se multiplica para muito além de sua associação ao projeto responsável pela polêmica inicial, em 2011. Não estamos mais falando apenas sobre uma cartilha do Ministério da Educação, mas sim sobre um “espectro”, um fantasma escondido sob as portas de um armário, que pode sempre voltar a aparecer e assombrar com sua iminente ameaça à infância. Articulado à suposta “ideologia de gênero”, “kit gay” torna-se um legítimo pânico moral, acionado em resposta a qualquer menção à possibilidade de uma educação não pautada pelo sexismo e pela heteronormatividade. Não por acaso, na fala de Crivella, vemos uma articulação entre sexualidade e uso de drogas. As duas coisas não apresentam nenhuma relação entre si, mas são tomadas como partes desse mesmo “monstro” que coloca em perigo noções idealizadas sobre a infância.
Como responder a tal movimento? É notável que a crítica, ao longo dos anos, destinou seus esforços a comprovar a falta de veracidade do “kit gay”. Tratando-se de um material abandonado por Rousseff, o uso político de tal expressão só poderia designar uma “mentira” ou “fake news”. No entanto, é possível que reduzir o debate à disputa entre verdadeiro e falso tire o foco de uma das suas partes mais importantes: o pânico sobre a diversidade sexual e de gênero, sobretudo no campo da infância.
É necessário, portanto, que a crítica vá além de apontar a falta de veracidade do pernicioso significante. Não basta dizer que “kit gay” é uma mentira. É necessário dizer qual a verdade que sustenta a proposta de educação contra a qual o “kit gay” é mobilizado. Temos de dizer: sim, é possível fazer uma educação comprometida com experiências múltiplas e não normativas da infância. É possível uma educação que não se paute pelo sexismo e pela heteronormatividade. É possível outra educação.
* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do NUH – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT.
Imagem de destaque: Manifestantes protestam contra filósofa norte-americana Judith Butler no seminário Os Fins da Democracia realizado pelo Sesc Pompéia, em parceria com a Universidade da Califórnia Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil