Jogos Olímpicos, ontem e hoje

Alexandre Fernandez Vaz

Na última sexta-feira foram abertos os Trigésimos-terceiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, em Paris, repetindo o que acontecera em 1900 e novamente há cem anos, quando a cidade sediou a segunda e a oitava edições do evento. Passados um século e tanto, o mundo mudou e, em seu interior, no esporte as coisas são igualmente outras. Enquanto naqueles tempos ainda perdurava certo amadorismo e o empenho para que o caráter aristocrático das práticas esportivas predominasse, o profissionalismo é atualmente absoluto. O recrutamento para as seleções de cada país não é mais realizado entre os filhos das elites (e filhas, mas muito poucas, já que a participação feminina era muito limitada), mas considerando principalmente a performance que poderá ser oferecida por cada atleta. Em uma atividade muito determinada por números a aferir desempenho, tal controle é rígido e frequentemente eficaz.

Nascidas em 1896, por iniciativa principalmente do Barão de Coubertin, as Olimpíadas são como um último suspiro da aristocracia reagindo contra o liberalismo das revoluções burguesas, principalmente a de 1789. A ênfase no amadorismo, ou seja, na participação desinteressada de homens (e secundariamente de mulheres) que não ganhavam a vida treinando e competindo, mas, sim, podiam praticá-lo por puro divertimento e cultivo de si, fez do esporte um fenômeno de exclusão social e étnica. Foi o profissionalismo que tornou possível a participação de vários segmentos sociais nos eventos esportivos. Por isso o elogio ao amadorismo e o rechaço à profissionalização dos esportistas (“não jogam por amor à camisa”), tão frequentes mesmo em ambientes progressistas, têm raízes conservadoras e às vezes até mesmo reacionárias.  Criticar a exploração do trabalho, sob a complexa configuração do espetáculo esportivo e do esgotamento e destruição corporal a que estão submetidos os competidores, é diferente de cultivar a nostalgia de um modelo excludente e elitista. 

A atividade profissional dos atletas está vinculada ao bom desempenho que, na melhor das hipóteses, os levará à medalha. Mas isso se relaciona à possibilidade de exponenciar o espetáculo com a multiplicação das imagens, primeiro ao vivo, depois na infinita reprodutibilidade. A afinidade entre os Jogos e a transmissão imagética é antiga: uma das primeiras emissões televisionadas da história foi exatamente nas Olimpíadas de 1936, realizadas sob os auspícios do nacional-socialismo. Atualmente, ao sem-número de câmeras acionadas para cada competição, somam-se as informações sobre os competidores e os comentários dos expertos. Além deles, as muitas lives, stories, postagens, compartilhamentos e sabe-se lá o que mais é possível nas redes sociais. Dia desses, Fernanda Torres expressava preocupação com o fato de que um ator deve ser agora igualmente um garoto-propaganda de si mesmo. Não é outra a demanda que se impõe aos atletas, a de mostrarem-se em momentos que não sejam os de competição, franqueando a seus seguidores e perseguidores o que seria da intimidade e do cotidiano. Frente à pergunta sobre o quanto há de verdade nesse processo, deve ser colocada outra: o quanto cada um já não se move e vive em função do que quer ou precisa imediatamente publicizar. Dito de outra forma, como já uma vez escreveu Walter Benjamin, trata-se de, antes de ser filmado em suas ações, agir sabendo que tudo o que for feito será registrado.

São essas as Olimpíadas nas quais brasileiros e brasileiras de diversas modalidades estão participando. Alguns, no entanto, não puderam chegar a ela, e o motivo é que se machucaram gravemente, como Darlan Romani (atletismo) e Isaac Souza (saltos ornamentais), ou foram suspensos depois de um exame antidoping. Foi o que aconteceu há poucos dias com o maratonista Daniel Nascimento, que seria o único representante nacional na tradicional prova de 42.195 metros, aquela que conclui o evento, antecedendo apenas a cerimônia de encerramento. Danielzinho, como é conhecido, foi flagrado em um teste surpresa, procedimento realizado fora das competições e a que todo atleta está sujeito, podendo ocorrer sem aviso prévio e a qualquer hora do dia ou da noite.

Eis aí um problema que há muito o olimpismo tem dificuldades em enfrentar, e não apenas porque a corrida farmacológica entre usuários e fiscais é acirrada. O establishment do esporte condena as substâncias que trariam vantagens vistas como ilegítimas e por isso seu consumo está posto na ilegalidade. A condenação do que seria trapaça se baseia na busca pela igualdade formal de chances, além da preocupação, hoje menos observada, com a preservação da saúde dos atletas. As duas questões são muito problemáticas. A primeira porque a equidade de condições não chega a ser realizada, uma vez que abundam os condicionantes sociais que envolvem o acesso, a preparação e o desenvolvimento de uma carreira, assim como as condições de treinamento (e de vida) são distintas entre países, clubes e pessoas, o que não exclui o uso de suplementos e drogas legais. A segunda porque as agressões ao corpo ao longo dos treinamentos podem ser muito intensas, massacrando-o e frequentemente deixando-lhe sequelas, processo que de saudável nada tem. 

Outra fantasia recorrente no esporte, principalmente em sua versão olímpica, é que ele faz uma pausa nos conflitos políticos e até mesmo bélicos, promovendo o congraçamento entre os povos de diferentes nações. Nada mais falso. A história das Olimpíadas é em boa medida a história dos confrontos entre estados nacionais e de suas decorrências, como as guerras anticoloniais. Os anos 1960 e 1970 viram novas nações africanas, países que se formavam a partir da independência de estados europeus, tomarem parte das competições. Os Jogos de 1988, por sua vez, tiveram a participação da inédita equipe da Comunidade dos Estados Independentes, formada por ex-repúblicas soviéticas, logo após o debacle do socialismo realmente existente e antes que tivessem suas próprias representações. Já houve boicotes ao evento, como consecutivamente nas edições de 1976 a 1988, todos por motivos geopolíticos, assim como manifestações importantes de protesto, como a antirracista dos velocistas estadunidenses Tommie Smith e John Carlos: medalhistas dos 200 metros rasos, levantaram o punho enluvado frente à bandeira de seu país, fazendo a saudação dos Black Panters na cerimônia do pódio em 1968, no México.

Ao mesmo tempo, países já se viram banidos das Olimpíadas, como a África do Sul sob o apartheid e a Rússia, impedida de tomar parte da atual edição por causa da guerra que provocou e mantém contra a Ucrânia. Correu um movimento para que tampouco Israel participasse de Paris 2024, dados os ataques genocidas que seus atuais dirigentes vêm perpetrando continuamente contra o povo palestino, sob o pretexto de exterminar o grupo terrorista Hamas – este que, por sua vez, pretende aniquilar os israelenses, o que é igualmente inaceitável, assim como destruir seu estado, cuja legítima existência é constantemente ameaçada. No fundo, a exclusão de um ou outro país depende das conveniências do poder global. Essas condenações acabam sendo por demais seletivas, já que muitos outros governos não são sopesados em suas ações violentas e ao arrepio dos direitos humanos. Para não ir muito longe (e seria possível ir, com certeza), fiquemos com o Brasil: quantas vidas poderiam ter sido preservadas se as medidas corretas contra a disseminação do covid-19 tivessem sido tomadas? Especialistas estimam números que podem chegar a 400.000. Ou seja, isso bem considerado, estaria o time verde-e-amarelo fora dos Jogos de Paris. 

Mesmo perante tudo isso, Emmanuel Macron tem dito que os Jogos reconciliam nações, estejam elas em conflito bélico ou impondo ou sofrendo sansões diversas. O presidente francês se empenhou muito para que as Olimpíadas pudessem mostrar para o mundo uma imagem positiva do país, mas soa constrangedora a pretensão de paz que ele pretende sediar. Se realmente houvesse a preocupação de ter nos Jogos países dispostos à concertação universal, a decisão mais razoável seria que eles simplesmente não acontecessem. 

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