Jogos Olímpicos: esporte, sociedade e transformações.

Alexandre Fernandez Vaz

Em exceção à regra, os Jogos Olímpicos de Tóquio acontecem não depois de quatro anos após a última edição, mas cinco. O efeito da pandemia de Covid-19 em um acontecimento tão tradicional se faz ver, além da mudança em sua periodicidade, em vários outros âmbitos, da ausência de público ao uso de máscaras (inclusive nas competições, em alguns casos), da presença restrita de oficiais e dirigentes credenciados à impossibilidade de participação de atletas positivados. A insistência em sua realização obedece às expectativas de atletas e de parte do público, mas, principalmente, às de organizadores, indústria do entretenimento e patrocinadores do evento. 

Muitos em Tóquio foram contrários à realização dos Jogos, o que não chega a ser uma novidade, já que nem sempre ser sede compensa o investimento que precisa ser feito para a realização das Olimpíadas – o que se soma, agora, ao medo do contágio. Mas, questionamentos superados (mas não de todo calados), estamos em tempos olímpicos. Em meio às competições esportivas, narradores e comentaristas ufanistas repetem ad nauseam a presença do espírito olímpico, o que não sabemos muito bem o que é, mas que parece ser um fantasma que já não assombra. O único espírito que conta é o mandamento da vitória.

A competição no Japão, como já aconteceu em outras edições, dá suporte à emergência de algumas das tensões sociais e políticas de nosso tempo. Tem sido dito que esses são os Jogos da diversidade, o que é um exagero. O esporte opera com comparações objetivas, professando a igualdade formal de chances (homens x homens, mulheres x mulheres, pessoas com o mesmo peso lutam entre si etc.), prática que, quando de alto rendimento, é muito pouco acolhedora à diversidade. 

É certo, no entanto, que há avanços significativos. As Olimpíadas, como outros fenômenos sociais, respondem às pressões diversas no conflito de força que em cada época se desenvolve. Se para o Barão de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna, as mulheres jamais deveriam tomar parte dos Jogos, o que ele diria da presença de pessoas não-binárias nas disputas atuais? 

De qualquer forma, alguém que se reconhece como não-binário (ainda) precisa optar por competir entre homens ou entre mulheres, já que o esporte se preocupa de forma obsessiva com a distinção precisa entre os sexos – sim, a questão é essencialmente biologicista, já que o corpo é reduzido a puro organismo e passa a ser visto como usina bioquímica a gerar energia e pôr músculos, ossos e sentimentos a explodir nas quadras, pistas, piscinas etc. 

Exemplo maior disso é o controle de características que designam quem seria ou não mulher, para os padrões esportivos. O alvo predileto são os corpos de mulheres trans, que teriam testosterona demais. Mas, não só elas, já que as cis que produzem o que é visto como excesso, como a corredora sul-africana Caster Semenya, também têm sua participação vedada.

Isso tudo se acentua porque os corpos femininos devem mostrar bom desempenho, mas também apresentar-se como atraentes para sensibilidades sexistas, patriarcais, heteronormativas. O vôlei de praia segue exigindo o biquíni como uniforme, enquanto seu congênere de quadra e o basquete puderam resistir, há anos atrás, às vestimentas coladas ao corpo, incômodas para as atletas. Quando vemos as ginastas alemãs recusando o tradicional collant em favor das calças compridas, parece que alguma coisa vem mudando.

Há ainda a questão do doping, a proibição do uso de substâncias que ajudariam, de forma artificial, ao desempenho humano, questão que remete ao debate sobre o consumo de drogas, de forma geral, em sociedade. Mostra-se aí uma contradição até mesmo pouco complexa, uma vez que não há nada de natural em participar de competições esportivas de alto rendimento, muito menos em se preparar para elas. Além disso, a ingestão de diversas substâncias consideradas legais – o que significa que estão, ao menos temporariamente, fora de um index – é comum e mesmo necessária para o treinamento, assim como a eventual prática de atividades bizarras, como dormir em uma câmara com restrição de oxigênio para que o organismo seja forçado a produzir hemoglobina para além do necessário para o dia a dia. O processo melhoraria a performance em provas de longa distância.

As manifestações dissonantes em relação ao status quo esportivo são muito bem-vindas. Elas dizem algo do esporte como direito de todas, todos, todes, resistindo, mesmo que discretamente, ao establishment olímpico. Vale também destacar que é possível e necessário renunciar à pressão absurda pelas vitórias, retirando-se da competição para tentar preservar a saúde mental, como fez a grande ginasta Simone Biles. O esporte é um ambiente conservador, frequentemente reacionário. Não precisa ser assim.

Sob o signo do caos, julho de 2021.

 

Para saber mais:

CHEN, Anelise. Esforços olímpicos. São Paulo: Todavia, 2021. (Rogerio W. Galindo).
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. São Paulo: UNESP, 2020. 286 p.
SESC IDEIAS – corpo, gênero e esporte: desafios presentes e futuros. Acesse aqui


Imagem de Destaque: Maxpixel

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