Sapatilhas antigas. Atrito. Chão em cera. Madeira. Laços desfeitos. Presilhas soltas. Uma perna no pijama. Um braço no collant. De fininho, devagarzinho. Madrugada adentro. Silêncio. Ponta em meia. O Quebra Nozes. Do russo. Aquele.
— Fulano…é a sua vez. Sophia está dançando.
— De nov…
Revezam-se os pais. Da criança., à noite. Não era sonambulismo. Excesso de imaginação.
— Interpretação, mãe!
— Dá na mesma!
— De jeito nenhum! Não mesmo! Imaginar é “uma” coisa! Interpretar é…é… mais sério!
— Tá, Sophia! Você é a entendida.
— Sou uma interessada no assunto. Sem ironia, mãe.
— Você tem oito anos, menina! Vá brincar!
— Pois é exatamente isso que estou fazendo.
Oito anos. Mil planos. Ideias para “reformar” o mundo.
— Defeitos são oportunidades.
— Não sei, filha. Nem sempre. Tem de pensar melhor esse conceito.
— Pai. Por isso eu estou dizendo ele em voz alta. Para pensar melhor.
Era assim com ela. Conversava muito. Silenciava bastante. Queria “visitar” o planeta. Dizia entender o mundo.
— Eu moro dentro de mim. O mundo é um condomínio.
Não raro, os adultos cunhavam-na desbocada. As crianças eram orientadas a não “caírem” na lábia de Sophia. As brincadeiras da menina visitavam o coletivo. Convidava a vizinhança para laboratórios de leitura, saraus, leituras, interpretações, júris simulados e lá se iam tardes inteiras de arteirices. O problema aparecia na opinião dos pais: Sophia tinha ideias demais! Talvez, cansados, se desobrigassem da curiosidade. Afinal, criança brinca. Não pensa.
— Pensa, sim! Pai! Explica isso para o pai da Júlia. Por favor!
— Vou tentar, Sophia. Vou tentar.
E tentava. Agendas atuais são engessadas. Adultos trabalham exageradamente. Homens, mulheres em plena produção. Sophia tinha um irmão menor. Três anos de idade. Arthur, a quem ela devotava seu “maior investimento”.
— Dança, bebê. Dança.
De dentro das sapatilhas largas, Arthur ensaiava com a irmã. Seria um grande espetáculo.
— Agora…isso! Levanta os dois braços. Assim… isso mesmo!
A genialidade de Tchaikovsky alargava mundos. Virava outros. Abria os diários de sonhos rodopiantes.
— Sophia! O que é isso? Pare já!
— Ô, pai! Estamos ensaiando.
— O seu irmão não deveria estar aqui!
— Não? Você o prefere em frente à TV?
— Menina…
— Pai! Deixa de ser preconceituoso. Estou investindo em meu bebê.
— Soph…olha, filha! Ele é muito pequeno para…para…dançar.
— Hum!? E se for um funk? Hum? Hum?
— Filha, ele não está em idade para isso. E nem você.
— Já contou os nãos dessa conversa, pai? Contou?
Antes mesmo que o pai acionasse a resposta, Arthur e Sophia engatavam outro passo. De costas, o pai ainda ouviu a filha dizendo sobre os ombros:
— Pai! Eu e meu bebê estamos felizes! Respira!
Ele respirava. Cada dia menos. A gravata. A empresa. A família. Os vizinhos. E as suas costas. Já não carregava o mundo como antigamente. Amarelava. Mas as reflexões não chegaram à escada. Gritos. Sophia e Arthur gritavam a levantar telhado. Tropeção. Tapete no ar. A cena, daquelas que ninguém imagina, desenrolava-se sob a mesa de centro. Sophia, com o irmão no colo, saltitava entre as decorações um dia de louça.
— As porcelanas! – terceiro grito. Agudo. Saía da mãe que acorria em socorro.
As duas crianças aportaram no colo paterno. Menos ar.
— Vocês quebraram tudo! Meus …meus… – a mãe, enrolada em uma toalha de banho, não respirava.
— Sophia…Arthur! O que foi?
— A bigorna, pai. A bigorna subiu em meu braço. – lágrimas em dois cilindros. Cubos. Bacias. Saliva e lágrimas. Menos gravata. Mais choro. Babas. Ranhos.
— Do que você está falando, filha?
— Bigui…bigui…cabe/chu/da! Pai…bigui – era Arthur ensaiando uma resposta.
A mãe, entre cacos e almofadas, tentava descobrir de onde saía Tchaikovsky. Detestava. Traumas da infância. Ao alcançar o controle, matou o volume. Sem ceder aos apelos do acalmamento paterno, as crianças procuravam o rastro de algo. O quê? E a hipótese que assola pais e mães: cobra? Animal peçonhento? O jardim estava coberto por plantas convidativas. Aos pedidos de calma, ouvia-se o bigui de Arthur e os soluços de Sophia. A mãe, ao ver os filhos seguros, recolhia os cacos – lados pontiagudos perigosos; esfacelamento dos vestígios de sua lua de mel. Um desastre! Um risco! Vários minutos depois, já na cozinha, com os dois filhos sobre o tampo do balcão, o pai ouviu outra vez:
— A bigui…cabe/chu/da. Pai! A bigui.
— Era uma bigorna nojenta, pai. Tinha uma montanha de patas. Peluda. Gelada. Paiiiiiiiiii…
Sophia emitia os melhores ditongos do mundo quando de seu interesse. A mãe secou lágrimas e ranhos. Nenhum arranhão. Picada. Corte. Estavam bem. Aparentemente. Se fosse apenas um chilique de Sophia, Arthur não estaria tão apavorado. Estaria? Olha dentro. Fora. Dentro e fora. Nada. Longos momentos mais tarde, ainda na cozinha, os pais pedem aos filhos que expliquem muito devagarzinho o que lhes colocara medo. E eles explicam.
Continua…
Para saber mais:
TCHAIKOVSKY, Piotr I. O Quebra Nozes. Composição Musical. 1892. Execução ballet clássico.