Interpretação – essa personagem (Parte I)

Ivane Perotti

Sapatilhas antigas. Atrito. Chão em cera. Madeira. Laços desfeitos. Presilhas soltas. Uma perna no pijama. Um braço no collant. De fininho, devagarzinho. Madrugada adentro. Silêncio. Ponta em meia. O Quebra Nozes. Do russo. Aquele.

 — Fulano…é a sua vez. Sophia está dançando.

— De nov…

Revezam-se os pais. Da criança., à noite. Não era sonambulismo. Excesso de imaginação.

— Interpretação, mãe! 

— Dá na mesma!

— De jeito nenhum! Não mesmo! Imaginar é “uma” coisa! Interpretar é…é… mais sério! 

— Tá, Sophia! Você é a entendida.

— Sou uma interessada no assunto. Sem ironia, mãe.

— Você tem oito anos, menina! Vá brincar!

— Pois é exatamente isso que estou fazendo. 

Oito anos. Mil planos. Ideias para “reformar” o mundo.

— Defeitos são oportunidades.

— Não sei, filha. Nem sempre. Tem de pensar melhor esse conceito.

— Pai. Por isso eu estou dizendo ele em voz alta. Para pensar melhor.

Era assim com ela. Conversava muito. Silenciava bastante. Queria “visitar” o planeta. Dizia entender o mundo. 

— Eu moro dentro de mim. O mundo é um condomínio.

Não raro, os adultos cunhavam-na desbocada. As crianças eram orientadas a não “caírem” na lábia de Sophia. As brincadeiras da menina visitavam o coletivo. Convidava a vizinhança para laboratórios de leitura, saraus, leituras, interpretações, júris simulados e lá se iam tardes inteiras de arteirices. O problema aparecia na opinião dos pais: Sophia tinha ideias demais! Talvez, cansados, se desobrigassem da curiosidade. Afinal, criança brinca. Não pensa.

— Pensa, sim! Pai! Explica isso para o pai da Júlia. Por favor!

— Vou tentar, Sophia. Vou tentar.

E tentava. Agendas atuais são engessadas. Adultos trabalham exageradamente. Homens, mulheres em plena produção. Sophia tinha um irmão menor. Três anos de idade. Arthur, a quem ela devotava seu “maior investimento”.

— Dança, bebê. Dança.

De dentro das sapatilhas largas, Arthur ensaiava com a irmã. Seria um grande espetáculo. 

— Agora…isso! Levanta os dois braços. Assim… isso mesmo! 

A genialidade de Tchaikovsky alargava mundos. Virava outros. Abria os diários de sonhos rodopiantes.

— Sophia! O que é isso? Pare já!

— Ô, pai! Estamos ensaiando.

— O seu irmão não deveria estar aqui!

— Não? Você o prefere em frente à TV?

— Menina…

— Pai! Deixa de ser preconceituoso. Estou investindo em meu bebê.

— Soph…olha, filha! Ele é muito pequeno para…para…dançar.

— Hum!? E se for um funk? Hum? Hum?

— Filha, ele não está em idade para isso. E nem você.

— Já contou os nãos dessa conversa, pai? Contou?

Antes mesmo que o pai acionasse a resposta, Arthur e Sophia engatavam outro passo. De costas, o pai ainda ouviu a filha dizendo sobre os ombros:

— Pai! Eu e meu bebê estamos felizes! Respira!

Ele respirava. Cada dia menos. A gravata. A empresa. A família. Os vizinhos. E as suas costas. Já não carregava o mundo como antigamente. Amarelava. Mas as reflexões não chegaram à escada. Gritos. Sophia e Arthur gritavam a levantar telhado. Tropeção. Tapete no ar. A cena, daquelas que ninguém imagina, desenrolava-se sob a mesa de centro. Sophia, com o irmão no colo, saltitava entre as decorações um dia de louça. 

— As porcelanas! – terceiro grito. Agudo. Saía da mãe que acorria em socorro.

As duas crianças aportaram no colo paterno. Menos ar.

— Vocês quebraram tudo! Meus …meus… – a mãe, enrolada em uma toalha de banho, não respirava. 

— Sophia…Arthur! O que foi?

— A bigorna, pai. A bigorna subiu em meu braço. – lágrimas em dois cilindros. Cubos. Bacias. Saliva e lágrimas. Menos gravata. Mais choro. Babas. Ranhos.

— Do que você está falando, filha?

— Bigui…bigui…cabe/chu/da! Pai…bigui – era Arthur ensaiando uma resposta.

A mãe, entre cacos e almofadas, tentava descobrir de onde saía Tchaikovsky. Detestava. Traumas da infância. Ao alcançar o controle, matou o volume. Sem ceder aos apelos do acalmamento paterno, as crianças procuravam o rastro de algo. O quê? E a hipótese que assola pais e mães: cobra? Animal peçonhento? O jardim estava coberto por plantas convidativas. Aos pedidos de calma, ouvia-se o bigui de Arthur e os soluços de Sophia. A mãe, ao ver os filhos seguros, recolhia os cacos – lados pontiagudos perigosos; esfacelamento dos vestígios de sua lua de mel. Um desastre! Um risco! Vários minutos depois, já na cozinha, com os dois filhos sobre o tampo do balcão, o pai ouviu outra vez:

— A bigui…cabe/chu/da. Pai! A bigui.

— Era uma bigorna nojenta, pai. Tinha uma montanha de patas. Peluda. Gelada. Paiiiiiiiiii…

Sophia emitia os melhores ditongos do mundo quando de seu interesse. A mãe secou lágrimas e ranhos. Nenhum arranhão. Picada. Corte. Estavam bem. Aparentemente. Se fosse apenas um chilique de Sophia, Arthur não estaria tão apavorado. Estaria? Olha dentro. Fora. Dentro e fora. Nada. Longos momentos mais tarde, ainda na cozinha, os pais pedem aos filhos que expliquem muito devagarzinho o que lhes colocara medo. E eles explicam.

 

Continua… 

 

Para saber mais: 

TCHAIKOVSKY, Piotr I. O Quebra Nozes. Composição Musical. 1892. Execução ballet clássico. 


Imagem de destaque: lika777 / Pixabay

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