Infâncias Pretas, Capoeira Angola e Educação Afrocentrada

Mestre Primo
Rodrigo Duarte Portela
Coletivo Geral Infâncias

As crianças e as infâncias são hoje ponto central em diversas discussões a nível global. Seja no âmbito da família ou da educação, nos meios de comunicação, no ambiente político, ou no universo científico, esse tema tem estado urgentemente em pauta. Assim, vão se construindo em torno dos sujeitos crianças, e do período da vida infantil, uma série de reflexões e de tomadas de ações políticas que buscam desconstruir as concepções reducionistas destinadas a elas ao longo da construção da cultura ocidental.

A urgência de novos olhares que reconheçam as crianças como seres plenos de direito, autônomos no pensamento e em seus desejos, tem a ver, também, com a grave situação de vulnerabilidade a qual muitas delas se encontram no mundo. Ainda assim, é importante reconhecer que houve diversos avanços na garantia dos direitos das crianças ao longo dos últimos anos no Brasil, como a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente no ano de 1990.

No entanto, o nosso país segue com uma profunda desigualdade social, a qual afeta diretamente um número muito expressivo de crianças que ainda se encontram à margem  desses avanços. A UNICEF afirma que no Brasil 53.759.457 (cinquenta e três milhões, setecentos e cinquenta e nove mil quatrocentos e cinquenta e sete) pessoas têm menos de dezoito anos de idade. Dessas, ao menos 25,9% das crianças são pobres e 15,8% delas vivem em situação de extrema pobreza. Por estarem privadas do exercício de seus direitos, as maiores condições de vulnerabilidade recaem sobre as crianças negras e indígenas que aparecem associadas aos piores índices de qualidade de vida do país.

Do número total de crianças brasileiras, mais da metade são negras. Por isso,  as questões relativas à ideia de racialização e às consequências do racismo anti-negro que estrutura, historicamente, a sociedade brasileira, se tornam uma força impreterível a ser debatida. Para além do debate, é fundamental que haja tomadas de ação do poder público, das instituições e das comunidades que respondem pelas crianças, a fim de reconhecer e de combater as muitas formas de violência que a distinção de raças impõe, ainda mais sobre as crianças e os jovens negros das zonas rurais e das periferias urbanas.

Partindo de forte mobilização e de lutas constantes, o movimento negro brasileiro vem ampliando as discussões a respeito das infâncias negras nos campos social, político e científico. Assim, a resistência negra organizada segue construindo pesquisas, instituições, coletivos e muitas outras frentes que respaldam a criação de leis que visam minimizar as graves condições de vulnerabilidade vividas pelas crianças negras, bem como estancar as percepções depreciativas da branquitude em relação a tudo o que representa o universo da negritude, como a existência dos corpos pretos, a religiosidade, o pensamento africano e, antes de tudo, o direito à liberdade.

Dois marcos importantes que seguem nesse sentido são a lei 10.639/03 e a lei 11.645/08 que estabelecem a obrigatoriedade do ensino das culturas africana, afro-brasileira e indígena na educação básica. Mas ainda hoje há um grande distanciamento das práticas escolares no que diz respeito aos saberes, aos valores e às cosmogonias das culturas africanas. O que se vê muito comumente são festas isoladas no mês de novembro, tidas como a comemoração do Dia da Consciência Negra.

Acontece que muitos espaços sociais, assim como a escola, reproduzem as lógicas do racismo estrutural que ancora as relações de poder e, por isso, estão longe de alcançar um modo de educar que seja capaz de lidar com as muitas dimensões da exclusão racial e de estabelecer uma educação verdadeiramente antirracista.

Para que seja possível a transformação dessas perspectivas é importante voltarmos a nossa atenção para os espaços educativos próprios das culturas africanas e afro-brasileiras (quilombos, candomblés, capoeiras e outros tantos), sabendo reconhecer e apreender as potencialidades dos processos educacionais afrocentrados, compreendendo a sua importância na construção da identidade e da formação subjetiva das crianças pretas brasileiras.

Seguindo essa ideia, a capoeira angola se mostra como um poderoso meio de educação e de inclusão social, quando está associada a uma visão de mundo africana. Através do ritual, da roda, da musicalidade, da corporeidade e dos movimentos de luta que os povos africanos nos deixaram como herança, conseguimos acessar as nossas raízes ancestrais e nos conectar com as potencialidades educativas afrocentradas.

Nesses contextos, a centralidade não está na escrita, na estrutura curricular, ou no acúmulo de conteúdos, mas sim em nossas comunidades, nossas tradições, nossa espiritualidade, na harmonia com a natureza, na veneração aos nossos ancestrais e em vivências que geram valores que permitem a construção e a afirmação da identidade das nossas crianças enquanto pessoas pretas livres, conscientes da sua história, repletas de belezas, de inteligências e de afetos. São herdeiras de Áfricas!

Sobre os autores
Mestre Primo é mestre de capoeira angola e fundador do Grupo Iuna de Capoeira Angola em 1984. E-mail: mestreprimo@gmail.com

Rodrigo Duarte Portela é capoeirista, discípulo do Mestre Primo. Arte educador, músico, brincante, professor mestre em educação e inclusão social pela Universidade Federal de Minas Gerais e licenciado em Música pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: rodrigoduarteportela@gmail.com

Para saber mais
BRASIL. Casa Civil. Lei 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Casa Civil. Lei 10.639/2003. Brasília, 2003.

BRASIL. Casa Civil. Lei 11.645/2008. Brasília, 2008.

BRASIL. UNICEF. Documento do Programa de País 2017-2021. Agosto, 2016. Acesse aqui.


Imagem de destaque: Galeria de imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *