Marco Antonio Torres1
Durante uma aula de Psicologia da Educação, num curso de formação de professores (as) na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), uma estudante perguntou-me timidamente: “qual o tempo que um homossexual leva para se tornar uma mulher, ou, uma transexual?”. Como podem perceber era uma aula sobre processos de subjetivação e a questão de gênero. A pergunta não duvidava que uma “criança homossexual” se tornaria uma transexual, sua dúvida era o tempo que isto levava para ocorrer. Sempre explico às turmas que não existe pergunta tola ou equivocada, pois uma questão é sempre uma janela aberta numa sala de aula. Houve alguns risinhos abafados entre a turma e, confesso, estranhei um pouco aquela dúvida. Falei: “boa pergunta, mas podemos aprofundar um pouco mais”. Aos poucos compreendi que nesse tempo, na compreensão de quem perguntava, poderiam estar incluídas as “influências” que produziriam a transformação do homossexual para transexual. Isto se deu há quase dez anos atrás. Registro a temporalidade, pois em uma década nesse no tempo de “saberes digitais” é incomensurável para quaisquer assuntos.
Abro um parênteses aqui para afirmar que é importante considerar que instituições da UFOP, localizadas mais no interior dos estados, têm recebido nos cursos de licenciaturas muitos (as) estudantes da região em que estas se localizam. Em nosso caso, na UFOP, estudantes de licenciaturas trazem, com certa frequência, um forte pertencimento religioso, sendo em grande parte trabalhadores (as) que possuem família para sustentar e, não raro, jovens mães que se desdobram para permanecerem no ensino superior. Digo isto para sentirmos a especificidade das pessoas com as quais dialogamos, diferente daquela figura, muitas vezes idealizada, de um (a) “universitário (a) da federal” que vive por conta dos estudos, mora ou se desloca para uma grande cidade e possui outros circuitos sócio-afetivos para transitar. Não sou especialista nesse assunto, talvez, outras universidades de grandes centros possam experimentar questões semelhantes, mas creio importante essa caracterização para nosso relato.
Retornando a pergunta da estudante, inicialmente pensei que pudesse ser uma chacota da parte dela, algo que faz parte dos debates provocadores de tensões. Porém, com um pouco de diálogo, percebi que era legítima sua questão e não era nenhuma brincadeira. Ela relatou que teve um amigo de infância que era “homossexual” e na cidade as outras crianças o chamavam de “viadinho”, “mariquinha”, “bichinha”, dentro de uma semântica cruel das infâncias, própria de uma sociedade que infelizmente ainda rega os brotos da inteligência humana com lgbtfobia e desrespeito pela diferença. Parafraseando Martin Luther King (1929-1968), ninguém nasce odiando o outro, o ódio a gays, lésbicas, travestis, transexuais, entre outras pessoas, é produto de uma sociedade ainda injusta.
Aquela estudante permitiu-me uma ponderação inicial com a turma: como esse ódio ao menino “viadinho” tem sido ensinado nas infâncias? Quais efeitos esse ódio pode produzir na criança que se torna alvo desses ataques? Algumas pessoas da turma colocaram uma objeção a minha ponderação, as crianças poderiam estar “apenas brincando”, afirmavam que é comum entre coleguinhas certas brincadeiras.
Argumentei que o relato da estudante não era de um evento isolado, mas dizia da reiteração de palavras que ofendiam e maltratavam uma criança! Inclusive, foi acrescentado no relato que aquele menino saiu da escola e de casa muito cedo para residir numa cidade grande e depois ela soube que ele se tornara uma transexual. Diante da oposição ao termo ódio, usado por mim, mudei a questão para contemplar quem achava que era ódio e quem entendia aquilo como simples brincadeira, assim perguntei novamente: como esse ódio/brincadeira ao menino “viadinho” tem sido ensinado nas infâncias? Quais efeitos que esse ódio pode produzir na criança que se torna alvo desses ataques?
As questões anteriores não desmereciam a pergunta inicial da estudante, todavia deslocavam o foco para uma compreensão muito cara à perspectiva psicológica a qual me filio, isto é, um olhar que busca analisar os processos de desenvolvimento e aprendizagem na tensão das relações entre sujeito e sociedade. A partir desta compreensão, é possível entender que as posições discursivas das infâncias nos informam sobre essas tensões nos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Considero que essas questões precisam reverberar entre professores (as), familiares e outros (as) que se envolvem com a educação em nossa sociedade.
Às vezes não é a resposta o melhor caminho para uma questão, afinal uma sala de aula é diferente de outros contextos em que se trabalha com as informações e análises mais apressadas. Na perspectiva da Educação em Direitos Humanos, ou seja, quando se utiliza dos contextos educacionais para divulgação e reiteração das conquistas de lutas humanas em favor de uma sociedade mais democrática, participativa e justa, considero que o melhor caminho nesses momentos é ser como uma “chuva fina” que cai sobre a terra sem destruir as paisagens locais e quem ali habita. Aprendi essa metáfora em 2010, em Madrid, na Espanha, com um grupo de mães e pais que defendiam a diversidade sexual nas escolas. Ainda que em alguns momentos e situações as “tempestades” possam ser necessárias, no contexto da formação docente acredito muito em saber como ser “chuva fina”, principalmente quando tratamos de temas como as sexualidades.
Ao fim e ao cabo daquele debate, muitas percepções ficaram fora do lugar, porém um bom número de estudantes ainda continuava intrigado com a pergunta inicial, algo que revelou que não era uma pergunta estranha a muitos e muitas ali. Naquela altura do debate havia muito interesse e participação e perguntei como poderíamos responder às perguntas que surgiram naquela aula. Como de praxe, surgiram muitos casos da internet, com diferentes gradientes de lgbtfobia e outros com posições de reconhecimento das diferenças. Numa certa altura das discussões um rapaz disse que sempre foi gay, “com seus jeitos”, e não tinha desejo e/ou objetivo de “virar mulher travesti”; também disse que o mais importante não era saber se o menino seria “bicha ou travesti”, mas pensar formas de proteção às crianças que se tornam “alvo do preconceito”. Depois ele apresentou relatos de sua infância e outros rapazes se animaram a falarem sobre algumas de suas experiências. Para mim, esse rapaz indicou a melhor questão: o que temos feito para combater o preconceito (podemos compreender no contexto da fala preconceito como homofobia, pois se refere ao caso específico de gays) que atinge às infâncias? É uma pergunta que instaura a dúvida sobre a eticidade de nossas relações com as infâncias. De algum modo vivi a experiência dessa ausência de proteção, sendo uma “criança viadinha”, um menino que muitas vezes era cobrado para engrossar a voz, era intimidado para não “dançar” como menina e que aprendeu a se esconder bem cedo no armário das sexualidades.
Em relação às perguntas que eu formulei, posso dizer que elas ainda estão em aberto! Pesquisadores(as) têm se debruçado sobre elas, às vezes como “chuva fina”, outras vezes como “tempestades”. Nas políticas públicas em educação e nas políticas de direitos humanos, entre outros domínios, as disputas têm sido muitas. Um anacronismo moral mesclado com má-fé articula elementos religiosos e morais que silenciam as infâncias quando elas querem relatar sobre si, quando a expressão de seus corpos não se restringem aos limites anacrônicos de uma moral cisheteronormativa (leia-se cis-heteronormativa). Alguns pontos dessas nossas colocações são aprofundados em outro texto com colegas de pesquisa. Narro essa história em minhas turmas na universidade, ela ainda provoca risos, ainda produz dúvidas, ainda denuncia a insuficiência de políticas, de ações, de redes de apoio que se voltem para essas infâncias. Como homem gay ainda me pergunto sobre a ética em relação às infâncias, nos domínios das sexualidades, e considero que as respostas ainda são insuficientes.
1Professor Associado da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Pesquisador do Grupo Caleidoscópio (CNPq). Email: marcoatorres@edu.ufop.br
Para saber mais:
TORRES, Marco Antonio; SARAIVA, Izabella Marina Martinho; GONZAGA, Rubens Modesto. Sexualidades no contexto escolar: violência ética e disputas por reconhecimento. Revista Brasileira de Educação [online]. 2020, v. 25. Disponível aqui.
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