Ideias para adiar o fim da escola 

Edilson da Silva Cruz 

Ailton Krenak, uma das maiores lideranças indígenas brasileiras, em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo (1), questiona os paradigmas de igualdade social das sociedades capitalistas contemporâneas, que significam, na maioria das vezes, a negação da diferença e da alteridade. O autor defende a necessidade de afirmação da diferença, em favor de um projeto de sociedade alternativa. Em que pesem as crises sociais e ambientais que nós, seres humanos, provocamos, ainda vivemos um tempo “cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover” e essa sociodiversidade precisa ser reconhecida. As histórias dessas pessoas e suas culturas precisam ser contadas, trazidas à luz, confrontadas com os cânones, os padrões culturais hegemônicos. “Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, nos diz Krenak. Quanto mais garantimos que essas histórias sejam contadas, mais adiamos o fim do mundo e mais precipitamos sua transformação em favor daquelas e daqueles silenciados desde sempre.

Ao trazer esta ideia para o campo da educação, é imprescindível olhar e rever nossas práticas pedagógicas cotidianas, nossos currículos e nossas políticas educacionais, no bojo das transformações que inundaram, tal qual a cheia de um rio amazônico, nossas escolas por conta da pandemia de COVID-19 – ou tendo ela como desculpa. A necessidade de um ensino remoto escancarou as desigualdades sociais, acentuou as educacionais e segue questionando o modelo de educação escolar tradicional. Seria a escola ainda necessária, em sua forma e conteúdo, em sua organização do tempo e do espaço? Ou seria esse o prelúdio do fim desta instituição social, tal qual a conhecemos?

Ora, como educadores, nos compete a tarefa de pensar a escola, pois ela é o conjunto de relações sociais que nós construímos, ao lado dos outros sujeitos do processo educativo: educandos, comunidade escolar, poder público e outras forças sociais, públicas ou privadas. Nesse sentido, cabe-nos, como nos sugere Krenak, “contar mais uma história”, para adiar o fim da escola, assim como o fim do mundo, precipitando a transformação de ambos.

Mas, quais histórias precisam ser contadas, trazidas à luz, repercutidas? No âmbito da escola, localizada num determinado território, é a história dos sujeitos que ela atende: bebês, crianças, jovens e adultos. Quem são e em que contextos vivem? Nossas instituições educativas costumam ouvi-los ou são apenas objetos de políticas que nós, como objetos também, implementamos? A pandemia mostrou a necessidade de se repensar a gestão democrática como espaço de escuta daqueles que se valem da escola, com seus sonhos e aspirações, para construírem-se como sujeitos e cidadãos. É preciso compreender os contextos em que vivem e suas necessidades. E isso precisa ser garantido em um Projeto Político-Pedagógico participativo, ativamente ouvinte.

No âmbito curricular, é preciso contar as histórias silenciadas, fazer emergir as personagens esquecidas, deixadas de lado pela história. Vinte anos após a promulgação da Lei 10.639/03, quinze após a Lei 11.645/08, a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena ainda são tabus em boa parte do ensino formal. O racismo ainda expulsa da escola estudantes negros e indígenas e seguimos representando em nossas aulas um país embranquecido, povoado por europeus, mas sem representatividade negra e indígena. Adiar o fim da escola e precipitar sua transformação passa por assumir um compromisso histórico concreto, coletivo, em favor de uma pedagogia da ausência e da emergência, como propõe Nilma Lino Gomes, no livro O Movimento Negro Educador (2). Uma pedagogia que faça presente o que esteve ausente e que faça emergir o que sempre foi varrido para baixo do tapete. E não falamos de objetos, mas de sujeitos silenciados.

Quanto às políticas públicas educacionais, é preciso resistir ao eterno retorno do mito da escola pública ruim, que não educa, do professor sempre incompetente, do diretor ausente, da família desinteressada e pobre culturalmente. Época de eleição é um prato cheio para assistirmos à reprodução desses mitos nos diagnósticos e nas promessas de candidatos de diferentes espectros políticos. Há um caminho de conquistas sociais educativas que precisa ser conhecido, apropriado por educadores e pelas famílias, para que saibamos a partir de onde temos que avançar. A garantia de verba para a educação pública, de um piso nacional para o magistério, de acesso e permanência das crianças e adolescentes na escola são conquistas dos diversos movimentos sociais que ajudaram a construir a democracia brasileira. Cabe-nos assumir seu legado para evitar mais retrocessos e, se possível, avançar mais.

Adiar o fim do mundo, afinal, é uma tarefa comum a todos os seres humanos. Rever paradigmas exploratórios em relação aos recursos naturais, junto com a transformação das relações sociais em favor de uma igualdade na diferença, da afirmação da diferença, na garantia de recursos materiais e simbólicos para o desenvolvimento humano global. A escola pode e deve cumprir sua função nessa tarefa. Mas, para isso, precisamos evitar o fim da escola, não como defesa de paradigmas educacionais obsoletos, mas como construção ativa da igualdade na diferença, pela prática democrática e valorização do legado de lutas que nos garantiu conquistas. Adiar o fim da escola precisa ser o mesmo que precipitar o surgimento de outra escola, em meio aos escombros desta que vemos morrer.

Para saber mais 
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Saberes construídos nas lutas de emancipação. São Paulo: Vozes, 2017.


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1 comentário em “Ideias para adiar o fim da escola ”

  1. Martha Paiva Scardua

    Melissa, linda reflexão! E muito necessária! Estamos juntas nessa lida para fortalecer a escola pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada que humanize todas as pessoas que nela trabalham e estudam!

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