Maria Amália de A. Cunha*
Glauber Loures de Assis**
Homeschooling é uma modalidade específica de ensino, através da qual os pais (ou tutores e professores particulares) se tornam os responsáveis pela formação educacional e a aprendizagem dos filhos, incluindo aí um projeto pedagógico completo, que passa pela alfabetização e pelos diferentes ramos do conhecimento, da matemática à história. É transferir para a esfera familiar o papel atribuído à escola desde a Constituição de 1988.
Para tanto, é necessário, antes de mais nada, tempo livre para a formação educacional das crianças no seio familiar. E você acha que uma diarista precarizada, que ganha um salário mínimo, pega dois ônibus por dia para chegar ao trabalho e dois ônibus para voltar em horário de pico e chegar à noite em casa, tem tempo disponível para se tornar homeschooler?
Ou que um entregador do iFood que se arrisca em jornada dupla pelas ruas de Belo Horizonte para colocar comida na mesa se compraz naturalmente pela construção de um plano de ensino e a organização e acompanhamento diário do percurso formativo de seus filhos em casa?
Tais perguntas, cuja resposta é óbvia, revelam algo muito importante, a saber, que existe um forte componente de classe ligado à prática da educação domiciliar. Para falar na linguagem sociológica de Thorstein Veblen, homeschooling é coisa da classe ociosa. Ou de quem tem dinheiro para pagar babá e professor particular.
Mas, como já lembramos aqui, a realidade social é complexa, e o componente econômico não dá conta de explicar as afinidades eletivas entre o bolsonarismo e o homeschooling. Um componente igualmente importante é o fundamentalismo religioso.
Uma constante na defesa do ensino domiciliar são as justificações de cunho religioso, inclusive nos casos judicializados. A recusa em colocar os filhos em contato com a obra de Charles Darwin, o temor de pensar o ser humano como “evoluído do macaco”, a crítica à física newtoniana e à hipótese do Big Bang são posicionamentos comuns entre homeschoolers. Bem como o temor da “subversão” das relações e papeis de gênero, afinal, “menino veste azul e menina veste rosa”. Ao fim e ao cabo, em pleno século XXI revisita-se no país a relação beligerante entre igreja e Estado, público e privado, ensino confessional e ensino laico.
Tal cenário é reforçado pelo protagonismo de agentes religiosos na esfera política, como é o caso dos representantes da assim chamada “bancada evangélica”, de prefeitos pastores e de ministros de Estado que adotam uma postura assumidamente proselitista em seu ofício, como é o caso de Damares Alves, que chefia a pasta da Mulher, dos Direitos Humanos e da Família e é uma das principais porta vozes do ensino domiciliar no governo, sem falar no “Ministro Pastor”, Milton Ribeiro, Ministro da Educação e Pastor presbiteriano nas horas vagas.
Matéria da Folha de São Paulo do dia 13 de setembro de 2020, a chamada ‘pauta dos costumes’ é reacesa no Congresso: “A gente quer tocar homeschooling, armas e trânsito”, sentencia Ricardo Barros, o líder do Centrão e do Governo na Câmara.
Sabe-se que Bolsonaro foi eleito com o apoio massivo de religiosos, especialmente evangélicos, tendo feito, em contrapartida, uma série de acenos a esses setores, como ter sido batizado no rio Jordão pelo Pastor Everaldo, então presidente do Partido Social Cristão, que se encontra hoje encarcerado preventivamente por desvios na verba da Saúde do RJ. A defesa do homeschooling também cumpre a função de agradar a esses setores religiosos fundamentalistas que compõem uma importante base do bolsonarismo.
De forma complementar ao fundamentalismo religioso e à classe ociosa, completam o quarteto fantástico do ensino domiciliar bolsonarista o neoliberalismo, representado por grupos como MBL e por agentes como Paulo Guedes, adeptos da privatização irrestrita da educação, e setores político-ideológicos conservadores, como o “Escola Sem Partido”, que promovem uma cruzada moral contra o “comunismo”, a “ideologia de gênero” e outros temas considerados como “ameaças” à família e aos bons costumes.
Sob o embrulho poético da proteção das crianças e de uma educação humanista e personalizada, a defesa do homeschooling no Brasil revela sobremaneira uma agenda política específica e consciente de seus objetivos. Anti-iluminista, privatista, fundamentalista e excludente, ela defende o domínio da família e da religião na formação das crianças. Despreza a importância da socialização em ambiente escolar, a diversidade de visões de mundo como componente constitutivo da formação para a cidadania e o direito universal à educação, garantida pelo Estado.
Longe de propor soluções para os problemas estruturais das políticas públicas e das desigualdades educacionais no Brasil, o homeschooling é só mais um sintoma da crise, que anda de mãos dadas com o fundamentalismo religioso, a perda de direitos fundamentais e o desmonte dos serviços públicos.
Tudo a ver com Bolsonaro.
* Socióloga, Professora do DECAE na Faculdade de Educação da UFMG;
** Sociólogo, bolsista CAPES de pós-doutorado (PNPD) noPPGS – FAFICH.
Confira a primeira parte desse texto.
Imagem de destaque: Priscilla Du Preez / Unsplash
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