Fechaduras – uma leitura de leituras

Gustavo S. Neves

Uma criança curiosa, aprendendo a caminhar, tão logo alcance as maçanetas das portas, tratará de explorar cada cantinho da casa. Como quem está prestes a desbravar um universo novo, escondido dentro de cada cômodo. São galáxias inteiras guardadas nas gavetas e segredos infinitos dentro dos armários. A criança empolgada e interessada, terá a oportunidade de descobrir materiais novos, outras texturas, utensílios de cozinha, fotografias antigas e guardados de todo o tipo. É preciso ter atenção redobrada nesta fase, pois é quase certo que tudo o que ela descubra, terá a chance de ser colocado na boca. Mesmo assim, nada tira o encanto das portas que se abrem.

Por outro lado, nossos jovens têm escolhido uma rota semelhante. Os antigos diários trancados a sete chaves, deram lugar a uma exposição sem limites nas redes sociais, as portas foram eliminadas e nem existem mais cadeados. A própria relação com o corpo, a nudez, foi banalizada e ganhou status no lugar comum (algo impensável para gerações anteriores). Contudo, não podemos desconsiderar que tamanha revolução tem consequências. Junto da superexposição há uma corrida pelos procedimentos estéticos e uma cobrança social pelo corpo perfeito, nossos jovens estão mais expostos em todos os sentidos e por isso também, mais vulneráveis.

Nós também estamos mais vulneráveis. No último vértice deste triângulo, podemos discutir sobre mais uma face sombria da contemporaneidade. Em certo tempo, fomos convencidos de que é possível trabalhar duro, estudar, cuidar da alimentação, manter vínculos com o máximo de pessoas possível, ter dinheiro guardado, investir na Bolsa, além de adotar uma postura “good vibes”, (ser alegre e motivado o tempo todo). Francamente. Tem como uma receita dessas dar certo?

O problema não mora exatamente na “receita do bolo da prosperidade”, mas no fato de que as pessoas ao redor acreditem e cultivem a tal receita, ao ponto de que, aos nossos olhos ela pareça, (ainda que com graves distorções), como algo real e factível. O que fazer, quando vierem o cansaço, a reprovação, a frustração, a tristeza e a negação?

Os novos hábitos nos levam a crer que devemos estar abertos ao novo, abertos para tudo e para todos. Todos os credos, todas as ideias, todos os costumes, todas as culturas e oportunidades, tudo o que pudermos ver, ouvir, experimentar, degustar. TUDO. E não é bem assim. É preciso ensinar para a criança, aquela que está desbravando o mundo dos cômodos e das gavetas, que tão impressionante conteúdo estava guardado por alguma razão. E, portanto, é importante que depois de consultado o seu interior, que tudo seja novamente guardado. Os armários, as portas e as gavetas, existem para proteger e ocultar o que quer que seja, e é importante que a criança consiga compreender este princípio. “Respeitar os espaços e sua organização”, parece algo bobo e dispensável, mas fará grande diferença quando esta criança alcançar a vida adulta.

Aos(às) nossos(as) jovens, é provável que aprendam a se defender sozinhos, com o tempo, mas podemos orientá-los(as) de modo a que graves erros sejam evitados. O corpo humano é realmente uma ferramenta incrível, e merece toda nossa admiração, mas desde que não nos esqueçamos que cada um de nós tem um ritmo, próprios sonhos, individualidades e singularidades. A maravilha de existir está aí, e não no corpo perfeito e efêmero. Claro, a vaidade não é um problema em si, é até sinal de amor-próprio. Mas não podemos nos enganar e acreditar que a carência e a insegurança da puberdade devam ser reforçadas pela necessidade das curtidas nas redes sociais. É muito bom que tenhamos a aprovação de quem nos tem afeto, mas não podemos existir e alcançar nosso máximo potencial, se estivermos preocupados em atender as vontades alheias. Além do mais, nossas intimidades merecem ser preservadas e, ainda que escolhamos dividi-las com outras pessoas, é desejável que isso seja feito por vontade própria, e não por imposição do que quer que seja.

Por fim, nós também precisamos fechar as nossas portas. É maravilhoso observar o mundo pelo viés das oportunidades. Mas encerrar ciclos é igualmente fundamental. Nossa própria existência, em nada tem a ver com a eternidade. Estamos de passagem e isso é permanente. Trabalhar duro exige esforço, dedicação e tempo. É importante que sejamos capazes de fazê-lo sempre que julgarmos necessário e sem culpa por estarmos renunciando a outros afazeres. Estudar tem uma carga semelhante, fazer isso de maneira séria e comprometida, implicará em não ir a algumas festas. Cuidar da alimentação é fundamental, mas isso não pode nos tirar o prazer de viver. Do mesmo modo, não precisamos de todas as pessoas do mundo, precisamos respeitar as diferenças, mas o afeto e o reconhecimento das poucas que verdadeiramente nos amam é mais do que suficiente. Depois de tudo isso, tudo bem se não tiver um saldo generoso na conta bancária e tudo bem se isso te chatear. Ser feliz o tempo todo, cansa e irrita, chega a ser desrespeitoso! Maravilhoso é chegar em casa, tirar os sapatos, descansar na poltrona enquanto termina de ler aquele livro. Sim, termine de ler aquele livro! Saia do relacionamento que não anda bem, chega de estar ali por medo de ficar só. Chega de circular naquela turma, que não te completa, que não te alivia. Fique só, aprenda a ser boa companhia para você mesmo. Se o ruído estiver incomodando, feche a porta!


Imagem de destaque: PxHere

 

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