Escrita sobre a escrita em Clarice Lispector | Crônicas para todos: de Clarice e nós

Sabrina Cotta

Na coletânea “Crônicas para jovens: de escrita e vida”, Pedro Karp Vasquez reúne textos da brilhante Clarice Lispector com uma finalidade singular: inventariar os registros da autora sobre a própria escrita, numa aventura metalinguística sem igual.

Em suas crônicas, grande parte publicada em jornais, Clarice fala sobre suas aventuras ao escrever, seus medos e anseios relacionados à escrita (e à leitura) e sobre a imagem que comumente se associa aos escritores. Com delicadeza, a autora nos mostra o quão natural a escrita lhe aparenta; escreve – e descreve – com naturalidade e aponta como, para ela, a atividade ultrapassa os limites da profissão, num espaço onde o escrever por obrigação se funde ao fazê-lo por prazer, apesar de alguns percalços. Assim o faz com maestria em “mas já que há de se escrever” e “delicadeza”, num limiar entre a realização gerada pelo ato e a necessidade de escrever. Independentemente da finalidade, para ela, toda produção é forma de ser, partindo sempre do princípio de que a vida e a escrita lhe são indissociáveis.

Clarice Lispector se abre nessas crônicas – com alguns recortes breves, mas igualmente significativos – e reforça em diversas ocasiões sua vocação para a escrita. Isso ocorre de maneira nítida em “as três experiências”, em que descreve seus três chamados na vida: amar os outros, criar seus filhos e escrever. A autora ilustra como escrever tornou-se uma tarefa intimamente ligada à construção de sua própria vida: “A palavra é meu domínio sobre o mundo”. Assim, ela evidencia o quão relevante se mostra o uso da língua em favor da validação da própria existência, fato pertinente para muitos outros além dela mesma.

Sua sobriedade ao escrever sobre escrever pode fazer parecer, a olhos destreinados, que a autora é simplista quanto à atividade intelectual. Mas atenção: não o é. Em “escrever (I)”, Clarice afirma que “Não se faz uma frase. A frase nasce”. E quanta profundidade há apesar da aparente simplicidade dessa declaração! Ela fala sobre a arte literária como algo que ultrapassa o desejo objetivo do autor; enquanto escritora, ela se vê como uma mediadora entre o que já existe como ideia e a forma que essa ideia deve tomar para poder ser difundida. Acrescenta ainda, em “intelectual? não”, que sua produção não passa pela inteligência, e sim pela intuição. Vocação, intuição e amor são guias da autora que, sempre consciente de seu lugar, não nega que por vezes também sente “dificuldade de expressão” e uma tal “loucura diferente” enquanto busca escrever. “Escrever é uma maldição” ao mesmo tempo que é libertador. Todo paradoxo e contrassenso é bem-vindo; disso vive a arte literária.

O título do apanhado de crônicas, que faz parte de uma coleção pensada para jovens composta por várias coletâneas de textos da autora – Crônicas para jovens, subdividida em temáticas como “de bichos e pessoas” e “de amor e amizade” – também é significativo. É importante que as novas gerações se deem conta da grandiosidade de seu trabalho e que possam desfrutar de muitas das reflexões atemporais propostas por Clarice, inclusive estimulando, além da própria leitura, a ousadia em também produzir textos que falem do cotidiano, da arte, das descobertas e, por que não, da própria escrita. A seleção cumpre com essa função: humaniza a escrita de maneira a permitir que o jovem leitor se enxergue também na autora, que sinta suas dores, que viva as conquistas por ela relatadas e se descubra enquanto mergulha nos textos.

Por isso, a leitura desse livro em idade ou contexto escolar pode ser de muita utilidade para criar um vínculo entre adolescentes e os objetos de estudo literário. “Ei, tem alguém que escreveu exatamente o que eu penso!”, “Poderia ter sido eu a escrever essa crônica” ou “Que interessante, nunca imaginei que escrever poderia ser difícil, mesmo para escritores!” podem ser pensamentos recorrentes entre os aprendizes; vivenciar a literatura é preciso para motivar e suscitar neles o desejo de ir além, vendo o quão importante ela pode ser em nossas vidas.

Para os demais, no entanto, a obra não perde seu encanto. Também pode aportar preciosas reflexões aos jovens e adultos – talvez os jornalistas se sintam especialmente tocados ao ler sobre sua atividade de escrita enquanto profissão – enquanto a autora compartilha suas mazelas e as conquistas trazidas pela escrita. Além disso, as falas de Clarice sobre os limites de gênero literário são igualmente brilhantes para um público em particular: os professores. Em “máquina escrevendo”, divagações livres levam a autora a declarar que seu texto não se encaixa no gênero crônica (ela afirma categoricamente que não se encaixa em nenhum outro: “Isto é apenas. Não entra em gênero.”), sem que isso gere nenhum prejuízo. Ousada e verdadeira, a autora traz sua literatura para perto do leitor, que é exatamente o lugar a que ela pertence, com suas particularidades e sua liberdade.

Uma leitura leve e deliciosa, “Crônicas para jovens: de escrita e vida” fala tanto de Clarice quanto do potencial escritor que mora dentro de cada um. Fala sobre o escrever, o descobrir, o relatar e o encontrar (-se) enquanto, mesmo sem pretender, convida o leitor a entrar em si mesmo para questionar-se sobre suas próprias aptidões, desejos, vocações e, sutilmente, sobre sua própria existência.

 

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