Entre dores e espinhos: Flores de ébano

Alexandra Lima da Silva

“Honrar a nós mesmas, amar nossos corpos, é uma fase avançada na construção de uma autoestima saudável.” (bell hooks) 

Cresci vendo novelas e programas infantis com apresentadoras loiras, muito diferentes da minha própria aparência e de mais da metade da população do Brasil, que se autodeclara negra. 

Era no Carnaval que eu via pessoas negras como destaque. Com muito brilho. E eu cresci amando desfiles de Escolas de Samba: Beija-flor, Imperatriz, Portela, Mangueira. Todas eram “minhas escolas favoritas”. 

Adulta, me tornei educadora e historiadora.  

O Carnaval de 2023 foi emblemático para mim. Foi o ano em que Rosa Egipcíaca desfilou na Marquês de Sapucaí:

“Rosa Maria, menina flor

Rainha do espelho mar

Na pele do tambor

Pranto das dores que resistiu

Deságua no imenso Brasil

Sua luz incorporou” (Samba Enredo Viradouro, 2023)

A vida de uma mulher negra, sequestrada e escravizada ainda na infância, caiu na “boca do povo”. A escola de Samba Unidos do Viradouro levou para a avenida, a vida de Rosa e conquistou o vice-campeonato do Carnaval do Rio em 2023.  Mas esta não foi a primeira vez em que uma mulher negra, escravizada, foi enredo de escola de samba. Em 1963, a escola Acadêmicos do Salgueiro conquistou o primeiro lugar levando a história de “Xica da Silva” para a avenida, embalada pelo samba composto por Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira: “Com a influência e o poder do seu amor, que superou a barreira da cor, Francisca da Silva, do cativeiro zombou”. 

Sim, as rosas falam. E brilham. Com muita potência. 

Indago se também as escolas de samba, não são promotoras de “História Pública”, uma vez que:

“Os historiadores não simplesmente divulgam o conhecimento para o público, mas devem trabalhar em conjunto com as pessoas comuns. O passado seria reconhecido como o terreno social em constante mudança, e os historiadores e o público deveriam cooperar e trocar ideias de modo a que sua expertise pudesse satisfazer as necessidades, desejos e conhecimento cultural do outro (MALERBA, 2017, p.10)”. 

Ver Rosa Egipcíaca na avenida me impactou porque acredito que as biografias de pessoas historicamente silenciadas devem chegar ao conhecimento da maior parte da população brasileiro, é nisso que acredito e é o que tenho me dedicado a fazer em meu ofício: ensinar história para quem não está na universidade. 

Com bell hooks eu aprendi que:

“Ensinar fora do contexto de sala de aula é uma forma de assegurar que a educação democrática seja acessível a todas as pessoas. (…) Há várias maneiras de construir um espaço de aprendizagem fora da sala de aula. Uma das direções que meu trabalho tomou – e que tem me proporcionado um público diferente é a escrita de livros infantis. Comecei a escrevê-los como uma resposta a pais e mães, sobretudo mães negras, que me disseram que, uma vez que meus livros de teoria ajudaram jovens adultos a descolonizar a mente, eu poderia escrever livros para crianças que também desafiassem o racismo e o machismo”. (hooks, 2020, p. 215).

O caminho que eu encontrei para praticar o que muitos definem como “história pública” é a escrita (auto) biográfica, ficcional e para o público infanto-juvenil. Acredito que uma linguagem mais acessível seja fundamental para a democratização do conhecimento histórico. 

Retornando à Rosa, ela é especial para mim porque ela é a personagem que abre meu primeiro livro infantil: Flores de ébano, publicado no ano de 2020:

“Rosa brotou na África. Aos 6 anos, a menina foi sequestrada e levada para uma terra distante. Rosa foi uma das sobreviventes da longa e terrível travessia pela imensidão atlântica de azul profundo. Na nova terra, que tinha nome de uma árvore, Rosa não era mais livre. Numa rua que se chamava Direita, foi vendida. Mas Rosa cresceu. E um dia recebeu uma carta que lhe devolveu a sonhada liberdade. E ela aprendeu o segredo das letras. E num recolhimento, fez nascer um livro. E desapareceu” (Fonte: Silva, 2020, p. 4).

Rosa sobreviveu aos horrores do tráfico atlântico e precisou resistir cotidianamente, de diferentes maneiras. Ela deixou rastros, pegadas. E, a partir do árduo trabalho de pesquisa de historiadores e historiadoras, hoje é possível saber que essas pessoas existiram, resistiram e lutaram. 

A partir de rica pesquisa documental no Arquivo Nacional Torre do Tombo (Lisboa, Portugal), Luiz Mott desenvolveu importante estudo biográfico sobre Rosa Egipcíaca (1719-1778). Nascida na África, Rosa foi escravizada aos seis anos de idade, chegando ao Rio de Janeiro em 1725. Nas palavras de Luiz Mott:

Foi não apenas a primeira africana no Brasil, de quem temos notícia, a conhecer os segredos da leitura, como também provavelmente a primeira escritora negra de toda a história, pois chegou a reunir centenas de páginas manuscritas de um edificante livro Sagrada Teologia do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas, lastimavelmente queimado às vésperas de sua detenção, mas as quais restaram folhas originais. Rosa Egipcíaca é também excepcional por ter sido a única mulher de cor, ex-escrava e ex-prostituta, em todo o mundo cristão, a fundar um “convento de recolhidas”, o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto (Mott, 1993, p. 8).

Me intrigava saber: onde e como a africana Rosa Egipcíaca aprendeu a escrever? 

“Me entrego a escrever a predição

Lágrima nas contas do rosário

Dádiva ao clamor do coração

Palavras de um preto relicário

A voz que cobre o cruzeiro

Reluz sobre nós no fim do calvário

Navega esperança à luz do encantado

Reflete o azul” (Samba Enredo Viradouro, 2023)

Rosa aprendeu a escrever a partir de passagens de orações, com os ensinamentos de dois mestres: a portuguesa Maria Teresa do Sacramento e José Gomes. Por sua vez, o Recolhimento Nossa Senhora do Parto idealizado por Rosa era bastante heterogêneo, sendo que as “mulheres de cor” eram quase metade no número de reclusas: “As pretas eram em número de 7: Ana do Santíssimo Coração de Jesus, natural de Vila Rica, do arraial do Padre Faria, tinha 25 anos, sabendo ler e escrever” (Mott, 1993, p. 301). O recolhimento representou um caminho para que muitas libertas recebessem instrução e conquistassem certa “redenção” em relação aos olhares que associavam as mulheres negras a práticas de luxúria e libertinagem.

A partir dos ensinamentos de bell hooks, acredito que devemos dialogar com as bases, com quem está na educação básica, e, nas ruas, no transporte coletivo, nas praças, nos presídios, e principalmente, devemos lutar para que jovens e crianças se sintam representadas/os nas histórias que leem, nas práticas cotidianas, com e para além da escola. 

Meu ponto é: a autoestima das pessoas negras também importa. É essa hoje minha maior preocupação. Reconhecer protagonismos, não silenciar e compartilhar histórias que inspirem, divulgar outras narrativas e o protagonismo de pessoas que, mesmo em condições terríveis, como foi o caso da escravização, se levantaram, subverteram, resistiram, se reinventaram e se tornaram autoras das próprias histórias. 

1 comentário em “Entre dores e espinhos: Flores de ébano”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *