Entre atos e efeitos, uma reivindicação lésbica

Maria Célia Araujo Tomé

Ouso falar em primeira pessoa sobre a minha lesbianidade. Um dizer por muito tempo contido, não só ofuscado pelas armadilhas da heterossexualidade, compulsoriamente determinada e obrigatoriamente imposta (Rich, 2010), como também modulado pelo imperativo de uma “neutralidade” científica.

 Um dizer, assim como um gozo de mulher, interditado. E quando se fala sendo uma mulher que goza com outra mulher, os impedimentos, duplamente qualificados, asfixiam.

Fato é que, neste momento, desprendo minha língua e dedos; invisto meu corpo todo, quase monolítico, talvez mais úmido, a fim de que um grito saia: eu, lésbica. Sem receios de aprisionamento a um determinado posto de fala, pelo contrário, faço deste escrito-grito um eco de expurgo. Na busca por tensionar saberes sacros, a margem ocupa o centro. Com esta ocupação, são tantas as que tomam o seu lugar no eixo que me sustenta que, por vezes, no decorrer deste texto, a voz uníssona ganha companhia, refazendo-se em nós.

Sendo impossível me desvencilhar, assumo minha posição nas rachaduras do sistema. Disposta em meio a outras, busco nelas minhas referências. Procuro o que temos de mais semelhante e descubro as diferenças imprescindíveis de existência em nossas identificações.

Algo me interpela: uma lésbica só pode existir em referência a outra? Eu só existo se a outra, lésbica, existir? Eu, lésbica. Isso bastaria, não fosse a necessidade de empregar o futuro do pretérito. Não fosse a memória apagada e os desejos obstruídos.

O que a história não diz não existiu, já revelou Tania Navarro Swain (2000); e o que ela deixa de dizer é apagado ou destruído em prol dos interesses da moral, dos valores e da permanência e da reprodução de tradições e de convicções masculinas, brancas, heterossexuais. Em nossa sociedade ocidental, os valores morais e religiosos centralizam no masculino uma definição de humano universal de modo que, entre tantas outras coisas, os vínculos de afeto, amor, desejo e cooperação entre mulheres representam uma ameaça.

Ensinadas a amar, desejar, admirar e reverenciar os deuses-homens. Que subversão maior seria a de, além de não os amar, direcionar todo o potencial e concretização afetiva para outras mulheres? A resposta talvez já esteja dita – ou maldita. Subversivas, tratadas de pervertidas a criminosas, de pecadoras a invejosas (do falo), lésbicas, lesbianas, sapatonas; provocamos um mal-estar social ao nos desatarmos dos constritos efeitos dos discursos e das práticas dominantes.

Agora, entre nós: abro mão da primeira pessoa e me lanço na pluralidade das existências lésbicas. Corpos que expressam, além da resistência ao se nomear e existir perante uma história que insiste em nos apagar, uma potência criativa que produz significados a cada instante sobre a própria existência.

Quando enxergamos a nós mesmas e as outras pelas fissuras provocadas por uma existência autonomeada, que se adjetiva ao existir, tornamos possível a experiência de um continuum lésbico (Rich, 1980). Como existência e continuidade, a lésbica poreje na sutileza de uma relação entre avó e neta, como no conto “Vó, a senhora é lésbica?”, de Natalia Borges Polesso (2015), em que as peculiaridades de um entrave geracional, marcado no corpo e no tempo, são apenas partículas em meio a um todo extenso, complexo e repleto de significados… continuados. Significados que Haragi Borba Nunes (2021, p. 318) expressa na corporalidade sapatão, um “código aberto de uso estratégico” quando interpelados os pressupostos da construção sexo/gênero, e identificado, na lésbica como uma identidade, uma essencialização que opera na mesma direção em que a categoria “mulher” há muito vem sendo naturalizada.

Por esta perspectiva, autonomear-se sapatão não implica anulação dos termos lésbica e lesbianidade, por exemplo, mas provoca reboliço no pensamento que busca aglutinar tais nomeações em torno da categoria mulher a partir de uma lógica binária dos sexos (Nunes, 2021). Sapatão como uma identidade estratégica política, tendo em vista a ressignificação deste termo, outrora pejorativo, direcionado a nós com o intuito de ferir e aviltar nossas existências, mas também como potência lésbica (Silva, 2016). Mais que um giro em torno de palavras e de expressões, a autonomeação sapatão potencializa aquilo que existe aqui, para além do corpo, das práticas e dos desejos.

Provocada, repenso os nomes que utilizo ao me atribuir. Retorno à primeira pessoa, retomo o fôlego, satisfaço a ousadia. Eu, lésbica, sapatão, sapatona. Nomear pode ser criar, significar, definir. Mas são tantas as possibilidades de definição, assim como são inúmeras e diversas as possibilidades de existir no mundo como lésbica que os nomes se tornam efeitos, importantes e necessários, mas, ainda assim, efeitos.

Para saber mais
Nunes, H. B. (2021). Sapatão enquanto rizoma: Desterritorialização da lésbica. In: B. E. R. Alves, & F. B. Fernandes. (Orgs.), Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. (pp. 318-328). Tribo da Ilha. https://repositorio.ufba.br/handle/ri/33107.

Polesso, N. B. (2015). Amora. São Paulo: Não Editora.

Rich, A. (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas – Estudos Gays: Gêneros E Sexualidades4(05), 17-44. https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309 .

Silva, Z. P. (2016). “Sapatão não é bagunça”: estudo das organizações lésbicas da Bahia. (Tese de Doutorado, Universidade do Estado da Bahia]. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/24026.

Swain, T. N. (2000) O que é lesbianismo?. Brasiliense.

Sobre a autora 
Graduada em Psicologia pela PUC-Minas campus Poços de Caldas. Mestranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGPsi-UFMG). Integrante do Nuh – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG).


Foto: Elineudo Meira / @fotografia.75
Imagem disponível em: Galeria de imagens

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