Ensinar arte pra quê?
Cintia Carla Pedroso. Coleta do Trajeto, Curitiba, 2015 Brígida Baltar. Neblina orvalho e maresia coletas, Rio de Janeiro, 2001.
Fui buscar em Bachelard a resposta para esta pergunta que sempre me inquieta: ensinar arte pra quê? Pelas palavras dele acabei retornando à minha casa de infância e remexendo nas minhas gavetas. Lembrei do meu pai, meu primeiro mestre e grande amigo. Quando dei por mim estava sentada naquela casa, com minhas lembranças de outro século. Ele sempre dizia para aquela jovem leonina sabedora de todas as verdades: “Quem não conhece não vê!”
Quem não conhece não vê!
Para Bachelard, todas coisas resistentes trazem a marca das ambivalências da ajuda e do obstáculo e que de mãos vazias as coisas são fortes demais. Mas, se tivermos a ferramenta certa, o conhecimento certo, é possível entender a provocação das coisas. E na arte, no ensino da arte, a provocação tem muitas vozes, muitos rostos, muitas cores… Nestes momentos o professor assume o papel de mediador!
A palavra mediador significa “entre”, “entre as coisas”. Entre a arte e o aprendiz é possível um encontro rico, instigante e sensível. Mediação é encontro de repertórios, é ir além dos conteúdos, é reflexão, é experiência, é aproximação, é polimento! E se polimento é uma estranha transação entre o sujeito e o objeto, entre aluno e professor é um desafio!
É ensinar a ver o implícito e o velado, é explorar todas as possibilidades. Apontar signos, permitir que o outro construa outros sentidos, signos internos, assimilando e acomodando o “novo” na compreensão de “velhos” conceitos, processos e valores.
Ao assumir este papel, frente a uma turma de pedagogia, lancei o desafio em que cada um apresentasse um mapa do trajeto que faziam de casa até a faculdade. O que a princípio parecia muito simples – afinal, depois da internet os mapas deixaram de ser um mistério – foi se tornando uma tarefa das mais difíceis, pois mesmo para quem já possui os mais precisos mapas, é difícil determinar as coordenadas do sentimento estético e sair do papel era caminhar pelo trajeto complicado do subjetivo. E o que seria um desafio, tornou-se uma provocação: afinal que mapa poderia ser construído sem o papel?
Para ampliação do repertório imagético, as aulas foram passando – entre “uis” e “ais”!- apresentando novas ferramentas, novos olhares, outros debates, até que os mapas começaram, timidamente, a se transformar em tempo, livro, poesia, música, ruas, quilômetros, fios, arames, sinaleiros, bueiros, rios… Olhar!
O trajeto passou a ser vivido. Pensaram em quantas músicas poderiam ouvir, olharam para as esquinas, sentiram o vento, olharam a calçada, as marcas que deixavam, o verde escasso, as flores guardadas nos jardins das casas, recolheram o lixo, o resíduo acumulado no final do trajeto…Sim, o resíduo que ficava nos pneus do carro!
Quando uma aluna veio perguntar como faria para apresentar o seu mapa, pois percebeu que mesmo fazendo o mesmo trajeto, em um dia acumulava muita terra nos pneus e em outro não, que carregava insetos de um bairro para outro, que a chuva não levava todos os resíduos. Contou que chegava em casa em torno das 23:00 hs, muito cansada, mas que o novo, a descoberta, o pensamento do que poderia encontrar, lhe atraía e dava motivação para coletar as sobras do seu trajeto… [precisei “daquele” tempo para pensar]…
Naquele momento, percebi que precisamos saber se o que aprendemos ou ensinamos tem sentido para nós, pois neste jogo de aprender e ensinar, existem estes instantes mágicos, em que ficamos em um estado de total cumplicidade.
No desafio do mapa de trajetória, fui desafiada também, e descobri que ensinar é abrir espaço para que o outro possa desvelar o que pensa, sente e sabe, ampliando sua percepção para uma compreensão de mundo mais rica e significativa.
Em momentos como este reviro novamente minhas gavetas em busca do que posso ter guardado durante este meu trajeto, ou melhor, o que será que hoje vou coletar das sobras deste meu trajeto em busca da resposta: ensinar arte pra quê?