Marianne Gois Barbosa
Possibilidades anarcocriativas de enfrentamento aos encarceramentos de gênero e sexualidades dissidentes nos espaços não formais de educação.
Anarcocriar os espaços de educação é urgente. O contexto do Brasil do ano de 2022 reflete as políticas de silenciamento das pluralidades de gênero e sexualidades, essas que não se conformam com o roteiro criado pela cisheteronormatividade. Temos experimentado a crescente e devastadora exasperação do conservadorismo, neoliberalismo, autoritarismo, colonialidade, que, imbricadas, incidem sobre os nossos cotidianos. A população brasileira assistiu desde o golpe da ex-presidenta Dilma Rousseff à campanha do, desejo eu, único mandato do atual chefe de Estado, Jair Bolsonaro, discursos defendendo a “família tradicional brasileira”, a saber, a monoparental e acusando a existência de material didático denominado “kit gay”.
Os espaços da educação formal desde o início desse Brasil colonial configuram-se como locais de disputa. Disputa de narrativas, disputa de corpos, disputa de subjetividades, disputa de poder. Não por acaso, a educação – a que carrega consigo uma singularidade que se propõe neutra e universal – fomenta apagamentos das produções de conhecimento inconformes ao modelo eurocêntrico. Houve muitas investidas das políticas autoritárias e fascistas nos últimos 5 anos em marginalizar e criminalizar os debates em torno das discussões de gênero nas escolas, sobretudo. Com o apoio de grande parte da população, que de algum modo escancarou os microfascismos produzidos, e com a potência do movimento neopentecostal contemporâneo as escolas tornaram-se espaços com menos possibilidade de oxigenação para as sexualidades dissidentes que outrora. Temas urgentes como corpo e educação sexual (com muito cuidado às porosidades impregnadas nesse conceito) tornaram-se alvo de retaliação e motivo para disseminação de ódio às pessoas que defendem os feminismos, às pessoas viadas, sapatonas, travestis, aliadas, etc… Trata-se da famigerada – para os fascistas – “ideologia de gênero”.
O mesmo Brasil que montou e remonta o palco sanguinolento que mais mata pessoas lgbtqia+ em todo o mundo, que mesmo tendo a maior população de pessoas negras em diáspora está entre os mais racistas, que mesmo sendo Terra Índigena aparta os povos originários do seu solo sagrado, é o país que tem um chefe de estado que sente prazer em contar histórias. A oralidade, a contação de histórias é um saber muito valorizado pelos povos tradicionais de terreiro, mas nos espaços de educação formal é subalternizado. Então, qual a questão nas histórias contadas pelo Messias, o presidente? Bolsonaro não se furta de contar histórias racistas, misóginas, xenofóbicas, lgbtfóbicas, e etc…. Isso já não é novidade. A última contação de história – real – narra uma experiência de pedofilia. A quem interessa criminalizar nos espaços das escolas diálogos sobre cuidados com os corpos e expressões dos desejos, sejam eles quais forem, não passem pela experiência da repressão? Será que o povo brasileiro, essa multidão de pluralidades, vai engolir a seco um homem de 67 anos dizer que “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas de 14 anos?
Grada Kilomba em Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano me faz pensar sobre quais máscaras os senhores (que se pensam donos de escravos) estão reinventando na contemporaneidade. Quem, quando e o que pode falar? As indagações propostas por Grada e também por Gayatri Spivak apontam para possibilidades de criações anarquistas e micropolíticas. A mirada para o contexto de reiterados encarceramentos que se atualizam nos dispositivos estatais de controle, como escolas, residências terapêuticas, casas-abrigo, penitenciárias, e muitos outros mais; é estratégica para inventarmos resistências que não se anulam na possibilidade de reação às violências.
Apostar nos espaços não formais de educação é acreditar nas fruições que emergem dos slams, dos terreiros, das perifas, das sabedorias dos encantados e dos exus. Essas educações plurais me interessam, as educações que são ressonâncias das artes e das culturas plurais. E que sim, chega em todos os espaços, até nas escolas.
Anarcocriar os espaços de educação é urgente. Urgência vital de fazer vibrar as afetações, as ideias, as ações, os ativismos, as comunidades, de nos autorizarmos. Que as lufadas vindas das lutas situadas nas fronteiras nos atravessem e nos deem os impulsos importantes para continuarmos, também, com prazeres.
Sobre a autora
Doutoranda em Psicologia pela Unesp de Assis. Integrante dos grupos de pesquisas Grietas/CNPq e PsiCUQueer.
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