Empreendedorismo – Um mito devastador dos direitos humanos

Alfredo Johnson Rodríguez

A narrativa do empreendedorismo emerge no seio da prolongada crise de estabilidade e de legitimação do capitalismo contemporâneo, a qual configura a intensificação de um conjunto articulado de ajustes e reformas estruturais inerentes à lógica neoliberal de desregulação e de mercantilização das relações sociais e econômicas, exprimindo, em última instância, o incremento do desemprego, a precarização do trabalho, a superexploração dos trabalhadores,  o enfraquecimento das políticas do Estado, enfim, a redução de direitos.

Com efeito, a sociedade contemporânea vivencia um profundo processo de mudanças que redundam, concomitantemente, no desaparecimento de setores e ramos tradicionais da produção econômica e numa dramática diversificação de modelos de trabalho humano (informal, temporário, flexível, intermitente etc.), notadamente, no setor de serviços, em plena expansão, face à irreversível retração dos trabalhos rural e industrial.

Assim contextualizado, sustenta Ricardo Antunes: “o empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos”. Essa famigerada modalidade produtiva resulta, fundamentalmente, da conjunção de fatores tais como o crescente desemprego estrutural em escala global, o ideário neoliberal e a ascendente desobrigação do poder público de toda e qualquer forma de segurança social.

O empreendedorismo, portanto, se traduz enquanto mola propulsora de uma iníqua dinâmica de “empresariamento” da existência humana ou, como constata por outra via Habermas, ativação da “colonização do mundo da vida” pela lógica do mercado. Constitui, pois, um novo momento do desenvolvimento do capitalismo tardio, expressando seus princípios, valores e mecanismos de funcionamento.

Em suma, a narrativa do empreendedorismo tende a invadir vertiginosamente quase todas as esferas da vida social. Ela contrasta frontalmente com a realidade, ao propor um mundo de microempresários livres e felizes, paradoxalmente ancorado na individualização das relações sociais, no enaltecimento da competição e, consequentemente, no esvaziamento da ética e da solidariedade.

À luz dessas evidências sócio-históricas, é possível desvelar o sentido ideológico, mítico e falacioso do empreendedorismo, na medida em que, na análise de Campos e Soeiro, “exibe-se como uma ideia generosa e evidente, face à crise generalizada do emprego”, buscando legitimar-se como única e inequívoca alternativa à trágica condição de pleno desemprego: o menos vale mais, ou nos tornamos sujeitos empreendedores ou amargamos a desolação do desemprego.

A ilusão do empreendedorismo consubstancia o imperativo moral de que cada um é responsável único de sua situação, seja de sucesso ou de fracasso. No horizonte dessa investida ergue-se um mundo infernal de superexploração, desigualdades e abandono social. Na realidade, trata-se de “uma nova forma de dominação, tanto mais eficaz quanto mais incorporada na subjetividade e quanto mais capaz de nos fazer interiorizar a culpa pela nossa própria desgraça” (Campos e Soeiro).

Em contraposição a toda essa falácia retórica e operacional do empreendedorismo, constata-se empiricamente que a realização de um empreendimento individual por um/a trabalhador/a desempregado/a e sem capital inicial disponível, exigiria a venda de seu escasso patrimônio (carro, casa etc.), quando existente, ou a obtenção de empréstimos com riscos de endividamento. Por outro lado, os arautos do empreendedorismo ocultam que 90º% das iniciativas nessa perspectiva fracassam, ficando os/as protagonistas mais pauperizados/as ainda.

Fatalmente, essa nefasta ideologia, orquestrada pela elites econômicas globais, se projeta impetuosamente acoplada a outras iniciativas convergentes que, além de influenciarem no cotidiano das interações socais, redirecionam estruturalmente os fins e o curso dos processos educacionais nos seus diversos níveis, etapas e modalidades. Megacorporações empresariais e organismos multilaterais patrocinam e promovem a adoção de concepções mercadológicas pelo Estado na estruturação e execução da política pública de educação e na organização e funcionamento das instituições educacionais.

A recente dinâmica de elaboração, aprovação e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) evidencia essa estratégia, na medida em que, nesse documento diretivo, os conceitos de “competências” e “habilidades”, inerentes à lógica do mercado e do neoliberalismo, assumem centralidade em sua fundamentação, configurando uma flagrante colonização economicista do processo de ensino/aprendizagem escolar, portanto, consagrando uma formação dos/das estudantes radicalmente articulada com as qualificações exigidas pelo mercado no bojo do capitalismo tardio. Como se essa nefasta intromissão não bastasse, a BNCC prevê, notadamente no Ensino Médio, lançar mão de tempos escolares destinados ao estudo e práticas do empreendedorismo e à construção de projetos de vida individualizados, além, é claro, da disseminação dos preceitos da chamada “filosofia da felicidade”, através da aplicação de técnicas de autoajuda e “coaching” (sic).

Definitivamente, o empreendedorismo até aqui esquadrinhado configura um mito devastador, de grandioso poder destrutivo, pois condensa uma violação explícita e intensa aos direitos humanos, à educação e à integridade das pessoas, especialmente aos/às trabalhadores/as, crianças e jovens. Estamos, por conseguinte, frente ao hercúleo desafio ético, político e cognitivo de demolir esse mito e propor ações capazes de reconfigurar essa “nova ordem” global e local, enquanto militamos cotidianamente pelo bem-viver.

Sobre o autor
Pedagogo e Professor universitário. Mestre em Ciência Política e Doutor em Ciências Humanas (FAFICH/UFMG).


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