Sandro Vinícius Sales dos Santos
Nestes tempos lúgubres e sombrios, de Covid-19, de necropolítica orientando as posições de alguns governantes e de dirigentes sociopatas, acompanhamos, do conforto de nossas casas, via televisão, as notícias da dor alheia espalhada ao redor do mundo. Mesmo a dor sendo do outro, neste momento tão devastador, também pertence a cada um dos humanos. É como se esse vírus, instalado em todos os continentes do planeta, quisesse dar um recado muito explícito à humanidade: “é preciso mudar as relações com as pessoas e com o meio”.
Vivemos em um mundo ensimesmado, amedrontado, caótico… um mundo saturado de tecnologia e descobertas que não consegue encontrar um antídoto para aplacar essa dor e evitar tantas mortes. Somos herdeiros e produtores de conhecimento, mas não descobrimos um método para imobilizar o invisível. Parece que o planeta, como organismo vivo, envia um recado simples e claro à degradante (des)humanidade: “é hora de mudar a forma de ocupar o espaço e o tempo”.
O tempo de agora, na prisão dos domicílios, é um tempo estagnado. Em espaços fechados, o dia de ontem é igual ao de hoje e esse, certamente, será igual ao de amanhã. O espaço que ora ocupamos, é limitado pelas nossas posses pessoais: quem possui um quartinho, fica preso nele; quem tem casa com quintal, fica circunscrito nesse ambiente, mas quem tem muito dinheiro, não se contenta com o que tem e brada, de dentro de suas posses, que “O Brasil não pode parar”. Assim, nem todos estão amedrontados e acuados em suas casas. Pela televisão, é possível assistir as bizarrices de pessoas que colocam o lucro acima da vida. De modo breve, no presente texto, destacamos dois momentos: o da vida, em tempos de corona vírus e o da escola, em tempos de permanente violência.
Há dias, assistimos pela telinha, quase sempre impassíveis, às muitas tragédias que sacodem o planeta. Desde carreatas, com desfiles fúnebres e centenas de corpos à pessoas vivendo em situação de rua, sem as mínimas condições de autoproteção. Em contraposição, é possível assistir, também pela televisão, o grande número de pessoas lutando bravamente para salvar vidas: desde os garis, em seus cotidianos de limpeza, ao mais gabaritado homem da Organização Mundial da Saúde, com seu apelo incisivo para que as pessoas permaneçam em suas casas.
Assim, nesses momentos de reclusão, assistimos a repetição das mesmas tragédias. De modo reiterado, os telejornais apresentam, em três turnos consecutivos, a mesma dor alheia, assim como, a angústia de alguns governantes (prefeitos e governadores), “a plenos pulmões”, buscando convencer o “nosso” presidente de que “a vida vale mais que a economia”. Esforço inútil, pois a crença do presidente caminha na contramão daquilo que os cientistas do mundo inteiro afirmam sobre o vírus que mata de modo aleatório e implacável.
O homem que hoje ocupa a presidência do país não ouve ninguém. Mais do que o ato de não escutar, ao contrariar as previsões negativas de especialistas de áreas técnicas e científicas, assistimos, em muitos casos, com indignação, ele estampar um esquisito sorriso na cara, com ares de bom cristão, passeando em meio à multidão, cumprimentando, com toque de mãos e “presenteando” com selfies, os transeuntes. Logo ele que, como foi também noticiado, havia feito contato, em viagem no exterior, com inúmeras pessoas contaminadas. Essas mesmas mãos – sempre em constante gesto de arma com os dedos – se realmente infectadas, poderiam, com a chancela presidencial, transmitir o vírus para dezenas de outros “abestalhados” que também não escondem a ignorância do que ocorre pelo mundo. Tudo isso, no mínimo, é de deixar qualquer pessoa sensata, indignada. “Mas afinal de contas, para que a indignação, se se trata apenas de uma gripezinha, de um resfriadinho?”.
Em sentido contrário a essa estupidez, assistimos algumas pessoas – não vimos nenhuma delas se gabando de possuir histórico de atleta – buscando colaborar com esse mundo doente. São voluntários e profissionais que realizam campanhas para arrecadar alimentos, apresentando proposições para contribuir com as pessoas em situação de rua, descobrindo diferentes maneiras para fazer o remédio chegar aos doentes, ocupando-se com a saúde de pessoas infectadas… Enfim, são pessoas que se movimentam para combater o desamor e a morte.
Assistimos, ainda, simultaneamente, contrariando esses atos de abnegação e altruísmo, a mesma televisão mostrando grandes empresários desfilando em seus carros importados, com a bandeira do país em punhos, exigindo o retorno imediato de seus empregados ao trabalho. Homens e mulheres, com posses e poses de pessoas bacanas, em desfile esquisito de patrões, expressando o sórdido desejo do lucro obtido pelo trabalho alheio. Essas pessoas parecem se importarem pouco com a vida humana, em especial, com a vida daqueles e daquelas que lhes abarrotam os bolsos de lucro. Para eles, o valor que essas vidas agregam está contido nos algarismos de suas contas bancárias e, claro, tornam-se corpos que não importam, como apregoa Judith Butler. Com tudo isso, fica difícil, diante de nossa própria inoperância, de nossa própria ineficiência buscar algum tipo de solução. Somos também reféns do momento presente. Assim, para minimizar o sofrimento frente a tanta desolação, o melhor é desligarmos o aparelho de televisão.
Como professores da rede pública de ensino, não estamos exercitando, nesse momento, o nosso ofício em salas de aula. Não pisamos no chão da escola, por recomendação da Organização Mundial da Saúde. Contudo, o que chega até nós, são as notícias de nossos estudantes e das pessoas que vivem no entorno da escola, em becos e vilas desta imensa cidade.
Em menos de duas semanas, dois garotos foram mortos no entorno de uma dessas escolas, não foi morto pela pandemia, mas como de costume, por envolvimento com o mundo do crime. Não é a primeira vez que, aqui, neste espaço, lemos relatos sobre as mortes de “nossos meninos e meninas”. Para nós que trabalhamos em escolas de periferias, em zonas fronteiriças, onde impera a desigualdade, por mais que estejamos comprometidos com a vida, sentimo-nos imobilizados frente a essa realidade. Por muitos anos ainda, esses jovens vão continuar morrendo e por mais que tenhamos a compreensão de que a escola pode contribuir para salvar algumas vidas, outras tantas se perderão ao longo do caminho.
É muito triste receber as imagens dos nossos estudantes caídos, mortos, ensanguentados e irreconhecíveis. No geral, é gente preta. No geral, é gente pobre. No geral, é gente que muitos de nós, trabalhadores em educação, por mais que tentarmos, não damos conta de tirar do mundo das drogas e do crime. No geral, essa gente – que não é tratada como gente – carrega um longo histórico de exclusão e, de longa data, é colocada à margem.
O coronavírus ceifa milhares de vidas. Um dia – de acordo com as nossas esperanças – essas mortes, em função da Covid-19, cessarão. No entanto, neste tempo em que atuamos no magistério – atuando na educação básica e na educação superior – presenciamos muitas mortes de estudantes “nossos”. Eles vão continuar morrendo porque são pretos, pobres e são, em grande maioria, excluídos, desde sempre! Eles vão continuar morrendo porque, diferentemente da pandemia do atual momento – que não segrega por classe, etnia, religião, gênero ou raça – esses meninos e essas meninas, de modo mais particular, “esses meninos e essas meninas de cor” , – para utilizar uma expressão que incomoda – carregam inscritos em seus corpos, desde a origem, desde suas ancestralidades, um destino traçado, difícil de ser alterado. Como se fosse um círculo de onde nem todos conseguem escapar.
Enquanto esses sujeitos morrem, nosso coração sangra, porque a escola sozinha não dá conta de resolver todas as mazelas sociais! Na outra ponta, certamente, alguns de nossos mais significativos dirigentes exclamarão: “mas para que tanta preocupação, afinal de contas, trata-se apenas de uma gripezinha!”.
Imagem de destaque: Reprodução/Twitter