Nosso Projeto não se funda e se sustenta no campo político, antes, somos parceiros do campo acadêmico que se sentem responsáveis pela disputa sobre os sentidos da educação no espaço público. No entanto, essa ação que nos mobiliza a todos é, per si, uma ação política, e se funda na ideia de uma responsabilidade cidadã e, portanto, pública com os destinos de nosso país.
Assim, se por um lado, somos convocados a lançar sobre a crise um olhar analítico, por outro somos constrangidos a tomar posições e a nos engajarmos na disputa pelos princípios e pelas causas que achamos pertinentes.
Como demonstram nossas reflexões no âmbito de nossos projetos de pesquisa, o pensamento político mobilizado para e na intervenção no espaço público não é peça doutrinária, mas constitui-se de repertórios que os indivíduos e grupos lançam mão para dar legitimidade e eficácia à sua ação. Ou seja, no que se diz, sobre o que se diz e como se diz sobre a crise, suas razões e suas saídas, coabitam vários discursos e doutrinas políticas, não necessariamente coerentes e conscientemente articuladas.
Isso ocorre, claramente, neste momento político no Brasil. No conjunto dos argumentos mobilizados por aqueles que defendem a prisão do Lula e a saída da Presidente Dilma, comparecem temas, problemas, slogans e palavras de ordem das mais diversas tradições políticas – do combate à corrupção à defesa da democracia e do estado de direito, tudo está lá. Mas nestes discursos, habitam também aqueles da xenofobia, do racismo, dos preconceitos contra os nordestinos e os homossexuais, do ressentimento contra as políticas de ação afirmativa, dentre outros que fundam e justificam a violência e a violação da Constituição e, por isso, do estado de direito.
Nosso constrangimento diante desse discurso combativo, não raramente virulento e violento, é que, de alguma forma ele apreende e mobiliza dimensões da realidade que nos são caras e, mais do que isso, parecem tocar em fatos da vida pública do PT, da Dilma e do Lula sobre os quais nós também ficamos constrangidos e céticos.
Diante disso, temos que mobilizar um discurso que não se articule, politicamente, em defesa da Dilma, do Lula ou do PT, ou da condenação de nossos adversários, mas na defesa da democracia, do estado de direito. Isso passa, hoje, pela enfática condenação da mobilização das instituições públicas – em qualquer de suas esferas ou de seus poderes – para fazer política partidária, assim como pela não menos enfática condenação dos ritos extraordinários ajustados por membros da Polícia Federal e do Judiciário nas investigações contra quem quer que seja.
Esse é, talvez, um de nossos grandes desafios: como fazer para que, passada a convulsão, qualquer que seja o seu resultado, continuemos vigilantes contra a agressão a todo e qualquer cidadão, seja ele quem for. Isso não é parte de nossa cultura política, sempre muito leniente e compassiva com os privilégios da minoria que, não nos esqueçamos, não raramente nos inclui.
Dessa forma, não devemos ficar constrangidos em defender enfaticamente que o combate à corrupção também nos interessa e é fundamental para toda a sociedade brasileira. Se alguma pessoa, ocupando cargo público granjeou benefícios, seja essa pessoa quem for, deve ser punida nos rigores da lei. No entanto, do mesmo modo, podemos avançar e lembrar que não nos interessa nem é de interesse da maioria da população, uma perspectiva seletiva sobre qual corrupção deve ser combatida e quais agentes públicos e privados devem ser punidos.
Uma face de nossa sociedade que cultua os privilégios e é avessa aos direitos que nos igualam a todos, é justamente essa perspectiva seletiva no combate á corrupção e é por isso que o tema sempre serviu de bandeira para aqueles que querem (e não raramente lograram) romper com o estado de direito no Brasil. Agora, como em outros momentos, a corrupção que interessa combater é apenas aquela que justifica a retirada dos adversários que estão no poder.
Não é por acaso, pois, que o repertório daqueles que hoje ocupam o espaço público, brandindo a bandeira do combate à corrupção, atualiza o que há de pior em nossa tradição política autoritária, excludente e violenta. Não é, pois, apenas do combate à corrupção que se fala e, muito menos, da prisão do Lula e do afastamento da Presidente Dilma.
Nenhum de nós, em sã consciência, pode pensar que os sujeitos que ontem demonstraram o maior desprezo pelo espaço público e pela democracia, e que hoje se utilizam das garantias democráticas ardorosamente construídas por nós para se manifestarem, serão capazes de conduzir o país em direção a mais democracia e do alargamento do espaço público. Do mesmo modo, não podemos acreditar que as mesmas pessoas que combatem com rancor e violência as políticas de reconhecimento de direitos e as políticas que visam melhorar a vida do conjunto da população, serão capazes de melhor atender às grandes necessidades de nossas gentes.
Assim, da mesma forma que devemos analisar, denunciar e agir politicamente no tempo presente, não parece descabido retomarmos as razões que nos mobilizaram a organizar o projeto e que transcendem a conjuntura política. Como dizíamos em nosso último editorial do ano passado, “menos realismo e mais utopia; menos polícia e mais política”!
Hoje estamos muito melhor do que estávamos no momento de restabelecimento da democracia ou da eleição do Collor. Sim, avançamos muito e este avanço é uma plataforma importante para, qualquer que seja o desfecho da crise, continuarmos a pesquisar, ensinar, aprender, festejar e a lutar pelas nossas mais caras e refinadas utopias.