Em busca de orações profanas

Alexandre Fernandez Vaz

No final de semana passado, o Ministro Kássio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, atendeu à solicitação de uma entidade que reúne juristas evangélicos e autorizou a reabertura de templos religiosos no Brasil, temporariamente fechados por causa da crise pandêmica que nos assola. A autoridade considerou o caráter essencial das práticas religiosas, em especial no momento tão difícil pelo qual passamos, sugerindo a necessidade de conforto espiritual.

Enquanto escrevo este texto a decisão do Ministro vem sendo alvo de discussão. O Presidente da República, notório crítico do distanciamento social, apoiou a decisão, enquanto outros membros da Suprema Corte se colocaram contrários a ela, considerando o que seria sua inadequação ao perigo da pandemia que tem matado milhares por dia, e também sua inconsistência jurídica, já que há decisão do STF segundo a qual estados e municípios podem estabelecer suas próprias medidas de combate ao contágio do covid-19. Muitos deles haviam decidido pela interdição.

Outros também se manifestaram a favor do fechamento temporário dos templos – o exercício da fé dispensaria um lugar específico –, como o padre Júlio Lancelotti, de longo histórico de defesa da vida humana, em especial daquela cuja vulnerabilidade é extrema, como a da população que vive em situação de rua. Foi dele, aliás, um dos atos públicos marcantes dos últimos tempos, a destruição de blocos de concreto colocadas sob viadutos na região central da cidade de São Paulo. Eles haviam sido instalados para impedir que o espaço fosse ocupado pelos párias sem teto e sem esperança, livrando os olhares das pessoas de bem de tanto incômodo que sua presença causa.

Espero que a decisão pela interdição momentânea dos espaços religiosos seja confirmada, evitando-se assim as aglomerações que tanto mal têm causado a todos. Assim como em outras situações, o risco de não se conseguir que os protocolos de distanciamento (que não eliminam o perigo) sejam rigorosamente cumpridos não é pequeno. Está claro que o mesmo acontece com outras atividades sociais, que também devem ser impedidas. Não tenho dúvidas de que a ilegalidade delas deve ser duramente combatida, a exemplo das badaladas baladas em beach clubs em Florianópolis. Sua existência é um acinte e um deboche por parte de gente que se entende superior às regras que sobre todos devem incidir, gente que não cumpre protocolos porque supõe estar exercendo sua liberdade. O que fazem essas pessoas é, na verdade, impor a todos os demais a própria arbitrariedade, o autoritarismo, tão ativo entre nós, de sua indiferença. Tem pouca coisa pior que isso.

Não é simples, não ao menos para todas as pessoas, ficar enfurnado em casa, isso para aqueles que têm boas condições materiais de residência. Para os milhões que estão fora desse registro, as coisas tendem ao impossível. Mas isso não anula a necessidade de evitar-se, ao máximo, as aglomerações. Se o padre Júlio Lancelotti tem razão, não é preciso templo para fazer as orações, então penso que é hora mesmo de rezar, embora, no meu caso, prefira orar de outra forma. Sugiro um pouco de profanação: a leitura, o pensamento, a contemplação, a fruição estética.

Exige disposição e renúncia, já que estamos sob o império das notificações ininterruptas, da dispersão nervosa, o que Christoph Türcke chamou de cultura do défice de atenção. Com aulas síncronas e assíncronas, mas não sei quais e quantas estratégias para animar os alunos vistos como consumidores, a tarefa não é das mais fáceis. Observe-se, aliás, que se diz que os alunos devem ser seduzidos para as aulas, ou seja, devem se render à fascinação pelos sentidos, uma vez que já não podem sequer ser convencidos da importância de a elas destinarem atenção. Pensando bem, ter que convencer uma criança de que ela deve prestar atenção à aula, vá lá, mas a um estudante universitário, já é algo que mostra a que ponto havíamos chegado. O problema é que descemos ainda mais, já que convencer não adianta e agora é preciso seduzir.

Christoph Türcke escreveu o seguinte: “Nas palavras de Nicolas Malebranche: ‘Atenção é uma oração natural’. Tornar as crianças capazes de orar, nesse sentido figurativo, capazes de imergir em alguma coisa, de modo a se esquecer de si mesmas, mas justamente tendo nisso um vislumbre do que seria preencher o tempo: essa é talvez a mais urgente tarefa educacional de nossa época”. Isso vale não só para os pequenos, mas para todos nós. É tempo de oração, sim, mas não me refiro ao sobrenatural. Isso deixo para os que nele creem. Frente a algo muito concreto e mundano, que é a morte que espreita sem trégua, façamos nossas orações nas experiências estéticas, intelectuais, na contemplação e no cultivo de si – este que é, segundo ensina Michel Foucault, um exercício de liberdade. Com isso não nos salvamos do vírus, tampouco da pestilência do desastroso enfrentamento da pandemia, mas, quem sabe, esse conforto espiritual nos dê força para seguir para além da pura sobrevivência. Resta tentar.

Sob o signo da morte, abril de 2021.

 

Nota:  Na última quinta-feira, por 9 x 2 votos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios podem manter fechados templos religiosos.


Imagem de destaque: Fotos Públicas / Marcos Corrêa 

 

 

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