Efeitos de real e/ou escrita memorialista no poema Biblioteca Verde de Drummond – Parte II

Ivane Laurete Perotti

Seguindo, conforme Poe (2011, p. 4), o escritor escolhe o “efeito” pretendido e o faz com olhos à beleza: “ designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los.” (POE, 2011, p.4). Nesta perspectiva, Drummond trabalharia a (auto)ficcionalização da escrita e a sua performatividade, perfazendo movimentos de composição da memória em Biblioteca Verde como a “desconstrução” do passado que se apresenta reinscrito, amalgamando tempo e espaço, ou reencenado essas notações que carregam traços da infância do poeta, mas não instalam um sentido original e verdadeiro, incorrendo no “efeito de real” de Barthes. Ainda em Barthes, ocorreria a exclusão da possibilidade de “algum traço específico”, de “uma pertinência indubitável” da “narração dos acontecimentos passados”, em face da “narração imaginária” (BARTHES, 1971).  Afirma: “a literatura é absolutamente e categoricamente   realista:  ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real.” (BARTHES, 1971, p. 7-18). E insiste: “O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura.” (Idem)

Retornando aos estudos de Silviano Santiago, lê-se que “grafia de vida e composição artística são tomadas como organismos autônomos, vivos e interdependentes; no entanto, semelhantes nos respectivos processos de invenção e nas respectivas organizações internas.” (1976, p. 11). Quando Drummond recria o diálogo com o pai no poema em leitura, estaria a organizar uma construção que se coloca no espaço da criação literária, onde habita “o desejo de liberdade expresso por toda grafia de vida que escapa, ou não, da comum.” (SANTIAGO, 2020, p.50, grifo meu). Quando se trata de “trabalho de arte”, Santiago diz tratar-se de “autor/defunto, qualquer que seja ele ou ela”, uma vez que esse autor “retroalimenta-se com as lembranças pessoais, boas, más, terríveis ou horrorosas.” (1976, p. 137).

Na trilha das considerações, Antonio Candido argumenta que se pode ler poemas considerando-os “ como recordação ou como invenção, como documento da memória ou como obra criativa, numa espécie de dupla leitura, ou leitura de ‘dupla entrada’, cuja força, todavia, provém de ser ela simultânea, não alternativa.” (2003, p.54, grifo do autor), uma vez que a obra artística em si mesma não oferecerá marcas de elucidação da verdade ou da invenção. Considera que a simultaneidade é a característica que cabe a ambas, de modo a restar a obra em si mesma a ser tratada em sua natureza e espaço. Nessa proposta de leitura de Candido, inscreve-se o poema Biblioteca Verde, considerando não separar memória e invenção de seu patamar de “verdade/não verdade”, uma vez que Drummond parece operar sobre a linguagem com a maestria que lhe é peculiar: “Minha poesia é autobiográfica.”, como se estivesse a revelar e revelar-se. E continua: “É uma confissão, talvez a primeira forma de uma obra literária, ainda em bruto, insuficientemente transformada em criação artística.” (DRUMMOND, 1955, grifo meu). A análise dessa fala transcrita e registrada, por mais que soe límpida, carrega-se de duplos sentidos, rupturas e denegações que precisam ser recuperados. O que Drummond está afirmando, talvez se afirme no não dito e nas inferências construídas.

Em Arrigucci, no livro Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond (2002), lemos que a produção poética drummondiana se faz sobre um lirismo reflexivo, registro subjetivo de fatos que evolui para uma subjetividade a dobrar-se sobre si mesma. Para o literato, encontra-se em Drummond um trabalho esmerado de registrar as impressões que o mundo lhe imprime, devolvendo ao mundo a impressão em linguagem artística, sensível, interior, sem deixar de mostrar as dificuldades que o fazer poético engendra. Para Arrigucci, Drummond trabalha com o conflito, equilibra tensões, característica que se distingue em toda a produção drummondiana.

No poema Biblioteca Verde, o objeto de desejo do menino Drummond repousa sobre uma coleção antiga, encadernada em tecido de algodão, grosso e lustroso – percalina – na cor verde, com letreiro dourado, contendo a Coleção das Produções Literárias mais destacadas no mundo, com autores aclamados na antiguidade, na Idade Média e na modernidade, com 24 volumes e edição nacional em 1906, por Sociedade Internacional: Lisboa, Rio de Janeiro, São Paulo, Londres e Paris. Essa coleção provocou no personagem/menino Drummond a vivência dos sentidos, da sinestesia, quando ele percorre a textura, as gravuras, as palavras: “/ que bom passar a mão no som da percalina, / esse cristal de fluida transparência: verde, verde…/” (ANDRADE, 2015); coleção de valor sentimental: “Sou/ o mais rico menino destas redondezas. / (Orgulho, não; inveja de mim mesmo). / Ninguém mais aqui possui a coleção/ das Obras Célebres. /” (Ibid.)

A configuração dos elementos das obras na coleção vai desenhando a leitura que o personagem/menino faz: “Em filosofias /tropeço e caio, cavalgo de novo /meu verde livro, em cavalarias /me perco, medievo/; em contos, poema/ me vejo viver”. Na sua leitura: “Tudo que sei é ela que me ensina. / O que saberei, o que não saberei/ nunca/, está na Biblioteca/” (ANDRADE, 2015). Na poesia, o personagem vela pela coleção: “A mãe se queixa: Não dorme este menino. / O irmão reclama: Apaga a luz, cretino! / Espermacete cai na cama, queima/ a perna, o sono. /” (Idem). O ponto central, nesse poema, seria a iniciação/intervenção literária na vida do autor que, quando menino, desvela-se pela leitura. Há marcas de que o Drummond menino sabia ser leitor e que, em sua infância, conviveu com cânones. Suas leituras teriam contribuído para a formação do sujeito Drummond escritor? Valeria tatear por respostas.

É possível, dentro do enfoque da memória, perceber o poema como revisão da história, como pretexto para repensar a sociedade, quando o autor visibiliza a sua paixão pelos livros. É possível pensar o sujeito escritor Drummond, sem pensar em sua trajetória de leitor? O perceptível está nas marcas dessa formação do escritor sob influência da leitura, e, talvez, escrever tenha sido uma resposta aos textos lidos, um modo de inscrição no universo da criação literária: um leitor/escritor que se forja pela leitura contumaz. Essas evidências pairam sobre a questão da importância do ato de ler e de escrever, atividades que se interligam. O poema reafirma que no livro é possível entrar no universo da escrita/leitura: “leio, leio, leio” (ANDRADE, 2015, p. 2015), de modo a inferir movimentos do leitor em direção à história. Talvez, a leitura do menino/personagem pudesse ser pensada em oposição à pacata vida interiorana que o instala em Itabira, MG.  Assim, o Drummond personagem/menino configura-se em potência no universo poético, entre representação e realidade, reafirmando o lirismo reflexivo e o “efeito de real” que a beleza do poema instala. Não mais como um arquivo de memória, mas sim refazendo o caminho da cena/verdade crível, na criação de mais uma obra de arte literária, em cuja engenharia a “verdade” não se verifica, mas instala lacunas, desvios, recuos a serem preenchidos pelo leitor atento diante da beleza tornada linguagem.

Para saber mais
ANDRADE, Carlos Drummond de. Iniciação literária. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ARRIGUCCI JUNIOR, D. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

BARTHES, R. Efeito de real. In: Vários autores. Literatura e semiologia. Petrópolis: Vozes, 1971.

CANDIDO, A. Poesia e ficção na autobiografia. In:  A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 2003.

SANTIAGO, Silviano. Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis: Vozes, 1976. Acesse aqui.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. 2ª ed. RJ: Editora 7 Letras, 2011.


Imagem de destaque: Galeria de imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *