Efeitos de real e/ou escrita memorialista no poema Biblioteca Verde de Drummond – Parte I

Ivane Laurete Perotti

A produção poética de Carlos Drummond de Andrade se mantém com o mesmo frescor e tensão quando de sua publicação. Nascido em Itabira do Mato Dentro, MG, construiu com abundância um conjunto de obras marcadas pela beleza e pelo requinte vocabular. Entre elas, o poema Biblioteca Verde, acerca do qual leituras se somam e divergem. Biblioteca Verde faz parte da trilogia Boitempo I (1968), Boitempo II: menino antigo (1973) e Boitempo III: esquecer para lembrar (1979). O lançamento da coleção teria cunho memorialista, segundo alguns estudiosos, estruturada sobre as reminiscências da infância e juventude do poeta e da sociedade brasileira daquele tempo. Publicado a partir de 1930, Drummond não reforça conformidades, antes, articula tensões em uma escrita complexa, reflexiva, atravessada por estética apurada.

Na coleção Boitempo,  edição de 2015, direta ou indiretamente, Drummond refere-se ao tema da leitura, (experiências de leitura), infância, memória e identidade, constituindo um movimento da experiência histórica (social ou pessoal), na construção de um eu-lírico que se revela/não revela e revela o mundo.

Silviano Santiago (1976), no ensaio Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, na obra Poesia Completa de Drummond, observa que o poeta “tematiza com insistência e sabedoria a vida provinciana na Itabira do Mato Dentro ”, ao mesmo tempo em que oferece ao leitor uma poesia cosmopolita “passando-lhe a impressão de que o poeta é um homem do monde, nascido no século de Voltaire e Rousseau?” (SANTIAGO, 1976, XII, grifo meu). Para o crítico, as construções de perfil biográfico drummondiano diferenciam-se da escrita encenada, por mais que a história de vida do autor esteja em referência. Afirma que o “arquivo drummondiano apresenta a experiência autoral, os desvios, as dificuldades e não exatamente a intimidade do autor” (1976). A exemplo, Biblioteca Verde, quando o poeta aposta no jogo da ambiguidade, da ruptura entre a vontade do menino como sujeito leitor (iniciação literária) em sair do espaço interiorano, e o atrelamento às tradições familiares, ao que Santiago chamou de “viés proustiano” (SANTIAGO, 1976). Na mesma obra, Andrade teceu considerações sobre o que chamou de “mito do começo” e “mito da origem” – no qual esse mesmo começo dado em ruptura é negado e reafirma o peso e o valor da tradição e do passado – observando que o poeta, ao descrever sua iniciação literária, praticamente não fala de literatura. Para Silviano Santiago, a volta ao passado, garantida pelas técnicas da composição poética, presentifica os acontecimentos, sem que assim Drummond tenha escrito um livro de memórias. É a produção poética que prevalece sobre a memória na relação da linguagem que distorce o tempo, torna-o impreciso, imparcial.

O que o leitor encontra na leitura de Biblioteca Verde pode não ser a grafia de vida do poeta mineiro, mas sim, e também, o que Barthes (1971) chamou de “efeitos de real”, ou seja: marcas biográficas reconhecíveis, sem autenticação diante de fatos de vida: “ é a categoria do ‘real’ (e não seus conteúdos contingentes) que é  significada;” (1971, p.43). Ainda, “ a própria carência do significado em proveito do único referente torna-se o próprio significante do realismo: produz-se um efeito de real (idem, grifo do autor). Para Barthes, é o “fundamento desse inverossímil inconfessado que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade.” (1971, p. 43). O autor questiona “ se é legítimo opor sempre o discurso poético ao discurso romanesco, a narrativa de ficção à narrativa histórica” e termina assinalando que “a narração dos acontecimentos passados difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopeia, no romance, no drama” (BARTHES, 1971, p. 145).  E segue dizendo: “ a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real, fundamento desse verossímil inconfesso que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade.” (1971, p.164-165, grifo do autor). Ou seja, os elementos episódicos da história do autor/Drummond, em Biblioteca Verde, seriam uma forma resumida do que existiu/aconteceu e perde valor de verdade, a não ser dentro de sua notação poética, uma vez que o objetivo do poeta não é o de registrar na escrita a verdade do fato, mas de explorar a instalação daquele que escreve e a sua escrita: o jogo entre o fato e a ficção, o vivido e o inventado.

Pela mesma linha pode-se ler em Poe (2011, p.4, grifo meu) “Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, e ao objetivo Paixão, ou a excitação do coração, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa extensão, na poesia.”  O estudo que Poe faz, em Filosofia da Composição, aponta para apenas um substrato a demandar exigência na obra literária: a beleza.  Completa ele: “de modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a verdade não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral.” (POE, 2011, p. 4).

Para saber mais
ANDRADE, Carlos Drummond de. Iniciação literária. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ARRIGUCCI JUNIOR, D. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

BARTHES, R. Efeito de real. In: Vários autores. Literatura e semiologia. Petrópolis: Vozes, 1971.

CANDIDO, A. Poesia e ficção na autobiografia. In:  A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 2003.

SANTIAGO, Silviano. Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis: Vozes, 1976. Acesse aqui.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. 2ª ed. RJ: Editora 7 Letras, 2011.


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