A fuga para o infinito

Luciano Andrade Ribeiro

Um cachorro fugiu outro dia e permitiu que uma família se deliciasse num banquete das mais diferentes emoções. Fuga pra quem tem posse sobre o animal de estimação. Oportunidade para o ser canino que vive à procura de espaço para correr e de novos odores para conhecer o mundo. Não à toa e graças à energia que os nomes carregam, o cão em questão se chama Luck e, spoiler seja dado, a “sorte” conspirou a favor do reencontro.

Dados aleatórios do Google mostram que o Brasil é um dos três países com maior número de animais de estimação por habitante. Cerca de 70% da população tem algum bichinho em casa. Só de cães, chega a perto de 55 milhões. Esse fato prova que o ser humano, realmente, aprendeu que tem sido impossível enfrentar a realidade sem a companhia e lealdade da irracionalidade dócil e recíproca de um ser vivo que o transporta para um mundo mais inocente.

Tal qual o poder da ficção, elemento básico da criação humana que tira o sujeito da mediocridade cotidiana, contar com o aconchego de um cãozinho no final do dia permite ao homem ter um pouco mais de esperança no dia seguinte. Que sorte se amparar nesse consolo, para o homem. Que sorte ser acolhido por mãos cuidadoras, para o animal.

Dessa sorte, Luck, um maltês branco, peludo e no auge dos seus 7 meses de idade, aproveitou o portão da garagem aberto para explorar os prazeres do gigante mundo sem fronteiras e pleno de cheiros que se abria à sua frente. Os muitos quarteirões do entorno da casa foram pequenos para tamanha ânsia de conquistar tanto nos poucos minutos que dispunha.

A família, composta por pai, mãe e um casal de infantes, viveu uma verdadeira saga em, exatas, 19 horas. Cada partícula de tempo veio carregada de sentimentos que iam dos mais primitivos até os mais elaborados. O pai, revolto que era com a excreção produzida pelo animal, sentiu-se aliviado. A mãe, responsável por aquela posse do cão, tomou para si o desespero. As crianças, nas primeiras horas da fuga, foram ludibriadas pela escola e poupadas do inevitável sofrimento do desamparo da situação.

A mãe, como boa psicanalista que é, sentiu na pele a profecia de Freud de que “nunca estamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos”. Nada mais tinha sentido diante daquela situação. Localizar o cãozinho era significado de vida. Todos os laços possíveis e impossíveis de informação, desde vizinhos, transeuntes, redes sociais, câmeras de segurança, investigação de CPF até dados de Detran, foram alinhavados para uma costura perfeita que levasse a um bordado digno de memória.

Refazer os passos do Luck pelo infinito bairro em que mora fez com que a família se rompesse de toda lógica social. E aquilo que, antes, podia ser indizível, era dito e em alto volume para que todos pudessem ouvir. A aventura dessa reconquista levou os personagens da história para além da neurose do simples pensar e imaginar e os cravou na psicose clara de que ficar no que está vivo o tempo todo é enlouquecedor.

Como bem ensina a autora mineira Conceição Evaristo, “agarrar a vida, a existência e escrevê-la em seu estado de acontecimentos” é um revolucionário ato de escrevivência. Materializar esta história aqui serve para lembrar que desrazão é diferente da loucura e optar pela primeira garante uma transpiração importante de que a vida pode, muito bem, começar do meio pro início.

A sorte que Luck, da tradução do inglês, traz leva à raiz latina de que sorte é sors, aquilo que é “parte, porção, o que cabe a cada um”. Para o popular, a palavra é grávida de bons significados, entre eles, a de “força invencível e inexplicável da qual derivam todos os acontecimentos da vida”. No final, podem até dizer que foi, apenas, sorte encontrar o maltês fujão. Mas compreende-se algo muito mais vasto que isso e é Guimarães Rosa que ensina: viveu-se aqui um novo pedaço do infinito e “eu vivo o infinito, o instante não conta”.


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