Se há uma ideia que nas últimas décadas se encontra quase que onipresente nos discursos e nas políticas educacionais é a de que a formação para a cidadania é o objetivo fundamental da escola brasileira. Indivíduos e grupos os mais diversos, defensores de causas declaradamente antagônicas no que diz respeito aos projetos societários e de formação que defendem, não poucas vezes se encontram irmanados na defesa do ideário de uma escola cidadã e da formação para a cidadania.
Apesar de ter suas raízes em remotas discussões dos séculos XVII e XVIII, foi no Brasil republicano e, de forma muito mais intensa, a partir da década de 80 do século passado, que a ideia ganhou tamanha centralidade e unanimidade entre os educadores, os políticos, os gestores públicos e o empresariado. No período que recobre o final da ditadura militar no Brasil e a intensificação da luta pela construção do estado de direito entre nós, a ideia de uma educação para a cidadania estava diretamente atrelada à própria noção de recuperação ou mesmo de positivação da política, atividade e dimensão da vida tão vilipendiadas pela ditadura.
Se, inicialmente, a educação para a cidadania aparecia como um ato propositivo contra o status quo, rapidamente a ideia foi disseminada e capturada em outros meios que não aquele relacionado aos movimentos sociais e educacionais que visavam o alargamento do espaço público e o fortalecimento da democracia. Essa compreensão da educação passou a fazer parte das propostas políticas as mais diversas, de tal forma que hoje praticamente não distingue mais nenhuma proposta político-educacional em debate no país. Esse uso ostensivo da noção indicia, no entanto, o reconhecimento da importância da escola na formação dos sujeitos para ação política, mesmo que os sentidos atribuídos a essa ação não necessariamente sejam convergentes.
Ora, parece-nos que tal unanimidade precisa ser questionada e, no mínimo, é preciso perguntar pelos sentidos que as palavras carregam. É preciso, para sermos justos, reconhecer que há vozes que já há algum tempo questionam essa unanimidade. São aqueles poucos que afirmam que a noção de cidadania é limitada para dar conta do conjunto da formação do sujeito, e que não é possível reduzir todas as dimensões do humano à dimensão política, ou seja, àquela que é significada pela noção de cidadania.
Mas, é preciso que se diga, que mesmo entre aqueles que defendem a centralidade da formação para a cidadania nas políticas educacionais e nas práticas escolares, nem sempre o sentido dessa ideia é o mesmo. Digamos que há, na verdade, razoável dissenso entre a formação para a cidadania quando ela é mobilizada pelos movimentos sociais da educação, particularmente dos professores, e pelas federações das indústrias e o chamado sistema “S”, por exemplo. Entre os primeiros, falar em formação para a cidadania mobiliza uma grande expectativa de ação dos sujeitos na transformação consciente da realidade social e, na outra posição, há uma expectativa de melhor integração das novas gerações nas relações sociais tais como estão hoje estruturadas, notadamente aquelas que organizam o mundo do trabalho.
Mas talvez a unanimidade em torno da noção da educação para a cidadania encubra uma questão mais séria relacionada à própria noção de cidadania e, por extensão, da própria democracia entre nós. Não estaria presente, aqui também, a nossa dificuldade de reconhecer o conflito como a essência da vida democrática e, por conseguinte, a dificuldade de reconhecer as profundas diferenças de sentido emprestado à noção de cidadania no espaço público? Não estaria aqui também um dos fundamentos do nosso autoritarismo, aquele que leva continuamente à criminalização dos conflitos políticos que se estabelecem no espaço público e que justifica, em boa parte, a violência institucionalizada?