E será que queremos todos conosco? O direito à EJA…

Ramuth Marinho

Todos iguais, todos iguais
Mas uns mais iguais
Há pouca água e muita sede
Uma represa, um apartheid
(A vida seca, os olhos úmidos).”
Ninguém = Ninguém. Engenheiros do Hawaii  

No início da segunda semana de Agosto de 2021, o padre Júlio Lancellotti  –  pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo  e coordenador da Pastoral do Povo da Rua – foi criticado publicamente por uma deputada estadual do PSL, por efetivamente fazer o que realiza há alguns anos: doar alimentos para os ocupantes da região daquela cidade, em situação de rua,  “apelidada” de Cracolândia (em função do número de pessoas que vendem, compram e utilizam de forma abusiva drogas ilícitas).

Essa ação de caridade da Pastoral da Rua, absolutamente insuficiente para a transformação da situação daqueles cidadãos, mas também urgente e necessária para tentar garantir o mínimo de condição de continuidade daqueles seres humanos, também sofreu um processo de cerceamento por parte da guarda municipal paulistana, segundo o referendo.

Ainda segundo o pároco, o argumento utilizado pela deputada de que as doações de alimentos e cobertores aos dependentes químicos depauperados seriam um incentivo à criminalidade encontra ressonância em grande parte da sociedade brasileira, ainda que seja uma redução simplista de um complexo problema social.

Deste modo, enquanto defensor dos direitos humanos e sobretudo do DIREITO à educação básica para qualquer cidadão brasileiro, acredito que uma reflexão sobre o árduo processo de desconstrução dessa posição ideológica majoritária (punitivista, elitista, excludente e higienista) seja mais do que necessária. Se uma ação de caridade extremamente básica – garantir a comida para pessoas em situações extremas de vulnerabilização social – é criticada por muitos setores da nossa sociedade, qual será o “rebuliço” quando afirmamos que é DEVER do ESTADO BRASILEIRO a construção de políticas públicas (e portanto investimento público) que garantam TAMBÉM o acesso e permanência aos processos escolares formais, inclusive dos brasileiros em situação de rua, dependentes químicos, em privação de liberdade, em atividades laborais degradantes, etc.? 

O primeiro texto dessa editoria esforçava-se para apresentar alguns parâmetros conceituais e legais e caracterizar algumas balizas sobre os “sujeitos da EJA” no Brasil. Ele ainda é uma síntese muito feliz sobre os debates mais atuais do campo da EJA, elucubrando-se sobre os seus elementos constitutivos. Mas parece-me que todo esse conjunto teórico e empírico produzido nos últimos anos penetra cada vez menos nas políticas públicas educacionais para a EJA e principalmente no imaginário da população em geral. 

A Educação de Jovens e Adultos, pelo menos em meus espaços de atuação política e nos documentos oficiais, ainda é vista como uma modalidade educativa menor, aligeirada, marcada pela improvisação e dependente da condescendência dos gestores públicos para a sua efetivação. Aglutina-se à essa situação preocupante, a percepção que a própria noção de DIREITO SUBJETIVO ainda não está introjetada totalmente em muitos educadores que atuam nessa modalidade – que deveriam ser os primeiros a praticá-la.

E isso não é uma estultice ou afirmação vazia da parte do autor desse texto: foram vários os exemplos vivenciados em que negou-se o acesso (e alguns vezes, a própria possibilidade de acesso) a jovens e adultos ao seu DIREITO CONSTITUCIONAL de educação por esses serem “problemáticos”, “drogados”, “alcoólatras”, “muito jovens”, “sujos”, “descompromissados”, “criminosos”, “incapazes”, “doentes” e tantos outros adjetivos desqualificantes que circulavam em reuniões de educadores. Também me foi reportado que em uma chamada pública municipal – demanda histórica dos movimentos de EJA – em que pese os eventuais equívocos da estruturação dessa chamada, educadores da modalidade não se comprometeram integralmente com a divulgação dessa iniciativa para não “encherem a escola de vagabundos…” (sic).

Reconhecer, acolher e garantir a permanência de todos aqueles que têm direito à educação nesse país é uma tarefa hercúlea. Demanda investimento público dos poderes instituídos; construção de políticas inter-setoriais e redes de proteção social; comprometimento dos educadores com premissa educativa libertadora; capacidade de construção coletiva, democrática e horizontal, tanto da gestão pública, quanto no espaço escolar; possibilidade constante de processos formativos e avaliativos; garantia de condições estruturais mínimas e dignas, entre outros. 

Mas enquanto essas condições não consubstanciam-se todas, o “caminho das pedras” da afirmação do direito à EJA far-se-á caminhando… E a pavimentação dessa estrada passa necessariamente pela acolhida inegociável de todos, todas e “todes” em nossas escolas/processos educativos, quebrando a lógica expressa pela deputada no início dessa reflexão de sermos “todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”…

 

1 –  Professor da Rede Municipal de Educação de BH.  Membro do Comitê Mineiro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; do Fórum Metropolitano de EJA e do Fórum Estadual Permanente de Educação de Minas Gerais – FEPEMG.


Imagem de destaque: TV Brasil

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