“E o sistema que ruiu”
Imaginem uma escola onde fosse possível usufruir da excelência escolar, da cultura, da liberdade, de competentes professores com bons salários, de alto índice de aprovação nos vestibulares, de projeção alcançada na vida adulta, entre outras particularidades! Além disso, ter sua sede “sem muros”, projetada por um jovem arquiteto, Oscar Niemeyer. Essa escola existiu e continua existindo na memória, mesmo que idealizada, de seus ex-alunos e professores. Trata-se do Colégio Estadual de Minas Gerais, no período específico de 1956 a 1964.
Enquanto pesquisava a constituição dessa memória, deparava-me com um paradoxo. É justamente nesse período que o ensino secundário brasileiro era duramente criticado, exposto em sua ineficiência e incapacidade de atender aos jovens em idade de cursá-lo. Esses artigos estão disponíveis na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), produzida pelo INEP, muitos deles, assinados por Anísio Teixeira, Jayme de Abreu, entre outros educadores.
Nesse entrecruzamento de fontes, há, por um lado, uma história vivida por uma minoria, que denominamos “elite escolar”, que guarda, com grande orgulho, a memória, aparentemente homogênea e coesa, da excelência escolar. Para os demais que não conseguiram ingressar nessa instituição, devido aos diversos filtros seletivos, o registro e as estatísticas demostram a falta de oportunidade, a dificuldade de acesso e a exclusão.
Para ingressar no Colégio Estadual de Minas Gerais prevalecia, como critério de admissão, o mérito de cada candidato, a garantia da igualdade de condições para a competição. Contudo, identificamos que, antes da competição, outras variáveis influenciavam de forma significativa esse resultado, tais como o grupo escolar de origem, a possibilidade ou não de fazer um bom curso preparatório, a origem social do aluno e o capital cultural herdado da família. Dessa elite escolar era possível exigir sempre e mais, o que redundava em um alto nível de aprovação no vestibular. Esse ciclo virtuoso fortalecia a representação da escola como lugar da excelência acadêmica, que estava atrelada ao alto nível de exigência dos exames a que seus alunos eram submetidos ao longo do ano. Muitas eram as reprovações nos exames elaborados por competentes e bem pagos professores que, por sua vez, também passaram por uma rigorosa seleção antes de se tornarem professores do Colégio Estadual.
Esse sistema, contudo, ruiu. Foi possível, em nossa pesquisa, desenhar algumas cenas desse desmoronamento. As estatísticas do período escancaravam que, de 1900 a 1960, o número de analfabetos na população adulta brasileira havia crescido de 6 para 20 milhões! Algo precisava ser feito. O Plano Nacional de Educação, publicado em 1962, tinha como metas quantitativas a matrícula de 30% da população escolar de 11 e 12 a 14 anos nas duas primeiras séries do ciclo ginasial, matrícula de 50% da população escolar de 13 a 15 anos nas duas últimas séries do ciclo ginasial e matrícula de 30% da população escolar de 15 a 18 anos nas séries do ciclo colegial, atual ensino médio.
O movimento era, portanto, de ampliação de vagas e isso em sintonia com uma política nacional encabeçada pelo Presidente João Goulart (1961-1964). Na RBEP temos um discurso de Goulart que denuncia o peso que teria para o regime democrático o fato de haver uma população de quarenta milhões de pessoas maiores de dezoito anos, sendo que, destes, 20 milhões eram analfabetos. Isso, dentro de um contexto onde a Constituição Federal negava o direito de voto aos analfabetos, ou seja, parte ponderável do povo estava afastada do processo político nacional. Goulart formula, por fim, um apelo a todos os brasileiros e chama à responsabilidade a Nação, o professorado, os estudantes, e tantos outros segmentos da sociedade, para que cada um, naquele momento decisivo na luta contra o atraso, a miséria e o subdesenvolvimento, desse a sua contribuição.
A ampliação de vagas com a abertura de anexos ao Colégio mudou a configuração do Colégio Estadual e repercutiu, na percepção dos alunos e professores, uma compreensão que aponta para a impossibilidade de conviver conjuntamente, qualidade e quantidade. Para ampliar foi preciso abrir mão do exame de admissão que era rigorosíssimo. Nesse sentido, o depoimento de uma ex-professora é emblemático. Diz ela que “os salários já estavam caindo; as turmas eram heterogêneas; a seleção, para preencher todas as vagas, não podia ser tão rigorosa”.
Começamos a enxergar o complicado avesso da excelência escolar.
“Tinha que abrir, mas agora não daquele jeito, sem preparar os professores, sem dar os recursos, sem dizer o que fazer com o material didático. Eu acho que foi loucura”. Segundo a professora, os alunos que entravam no primeiro ano ginasial mal sabiam ler e se deram conta da ilusão de que “a gente queria extrair deles a mesma coisa que agente extraía dos privilegiados que tinha antes”.
Os professores começaram a se queixar nas reuniões dizendo que “esses meninos não sabem nada”. Ela conclui uma longa e interessante entrevista fazendo um desabafo:
“Em resumo é o seguinte: minha visão do Estadual é assim, por um lado romântica, mítica e tal. Era tudo uma beleza. Os alunos eram maravilhosos os professores também e tal e tal. Mas infelizmente eu faço uma análise triste de que isso se devia a condições privilegiadas, tanto dos professores, quanto dos alunos e no dia que esses privilégios cessaram, de parte a parte, o sistema ruiu. Pois é minha filha, eu já falei muito” (Ester, ex-professora).
Com a incorporação de um número maior de alunos ou “uma nova clientela”, não é apenas a escola que muda, conforme anunciou Anísio Teixeira, mas o discurso sobre a qualidade da escola pública secundária também muda. É esse dilema que atravessa os depoimentos e que causa, de certa forma, um desconforto quando acabam por aceitar, talvez por não vislumbrarem outra saída para o momento, que ter qualidade e bom ensino só é possível para poucos.
“Então eu acho que esse aspecto socioeconômico, tanto do bom pagamento aos professores, como da seleção severíssima dos alunos, redundava numa atmosfera elitista no bom e no mau sentido. No bom porque eram realmente os melhores alunos, os melhores professores, e no mau sentido porque excluía a grande massa da população” (Ester, ex-professora).
Hoje esse dilema ainda permanece. Temos as escolas AAA que selecionam e compõem seu público, seja no momento do acesso ou durante o percurso interno. Produzem um “resíduo escolar” que não aparece nas estatísticas. De outro lado, as escolas que acolhem a grande maioria, aqueles que chegam com pouco e que pouco podem oferecer. Aí entra toda a maestria do professor que tem que se virar com aquilo que lhe chega. Não se questiona que as escolas AAA fazem um ótimo trabalho e têm, em seus quadros, docentes de alto nível, entretanto a pergunta que fica é se essa excelência no ensino daria o mesmo resultado se o grupo fosse outro. Onde está a excelência? A resposta não se dá apresentando um ranking de aprovação nos vestibulares, isso diz muito pouco. Precisamos pensar de forma complexa, afinal o Brasil tem 40.366.236 estudantes matriculados na rede pública de educação básica – estadual e municipal, segundo dados do Censo Escolar de 2013. É para esse Brasil que precisamos oferecer um ensino AAA.
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