Da tecnologia-sonho: EJA e o poder de ler e grafar como direito

Douglas Tomácio
Ruan Debian

Dia desses fui apresentado à reportagem que dizia “em BH, mais de 50 mil ainda não sabem ler e escrever.”. Já no título, a dimensão do desafio apenas nos ares capitais mineiros. Foi nessa mesma reportagem que, diante da fala de destacada colega educadora, Analise da Silva, ouvi: “a alfabetização é uma tecnologia. É direito do ser humano se apropriar de todas as tecnologias que a humanidade desenvolveu. É uma tecnologia que garante que a gente seja capaz de ler e escrever no mundo que é quase que completamente letrado.”.

Um mundo letrado que, a todo tempo, requer de nós o acesso à tecnologia da alfabetização para dele fazer parte efetivamente. Poder lê-lo e grafá-lo é direito e remonta o desafio histórico que nos cabe. É entendendo-o que podemos, então, mirar a EJA como possibilidade e não possibilidade qualquer, mas como aquela que assina o câmbio, a força de frente fazer ao desafio assombroso. Afinal, é a EJA espaço de mudança.

Alfabetizar assume, pois, contorno de aposta interventiva, de acesso, de garantia, de luta histórico-política implicada em que educadores e educandos se encontram em partilha comprometida. Nesse sentido, ao se depararem com a oportunidade de acessar o espaço escolar e a tecnologia-sonho (ler e escrever), os estudantes também acessam na EJA o espaço do encontro consigo mesmos, com suas novas possíveis vivências. Um fazer que requer o protagonismo dos sujeitos que, em criticidade, ali estão como atores e atrizes de suas próprias histórias e, como tais, alçam e tecem mudanças em lutas letras-sonho.

Essa compreensão de câmbio, de resistência que imputa possibilidades outras e (re)configura histórias pode ser vislumbrada em Freire (2000). Em seu livro “Pedagogia da Indignação”, ele ressalta a importância da prática educativa libertadora, apontando para a natureza esperançada da educação; a qual compreende a história como uma possibilidade, jamais como fim determinado. Tal compreensão se dá inclusive quando do reconhecer dos limites da educação formal e informal, sob o estímulo e o possibilitar da capacidade de intervenção no mundo.

Lendo este mundo antes mesmo de ler a palavra, o estudante na EJA pode, já sob a apreensão da tecnologia, agora também a ler. Lendo-a, grafa-a e, assim, grafa o mundo também seu. Grafa e lê o direito que lhe cabe e consciente reivindica. E o faz na tecnologia que, na EJA, reafirma a capacidade criadora, de câmbio, de assinatura autoral.

Sim, diante estamos da historicidade como feitura humana, tecida no diálogo entre os saberes de ordens diversas, conforme aponta a perspectiva freireana. Uma compreensão ampliada de educação, capaz de perceber o sujeito como interventor do e no mundo, um ser que sabe, que tem na experiência e vivências tantas conhecimentos que importam e que devem atrelados ser ao saber científico, como destacaria Pereira (2009).

Um saber ciência de faces EJA, sob poros de lutas-sonho, de fazer empretecido, de vozes mulheres ancestrais, de encontros geracionais, de acesso à “tecnologia direito”: alfabetizar-se em letrado mundo para nele intervir autonomamente.

Ao se falar da Educação de Jovens e Adultos, em voga está a vida e os contextos que a ela fundam. Nesse sentido, pensar a EJA é fazê-lo em observâncias constantes às dinâmicas, especificidades, aos cotidianos repletos de possibilidades e desafios que compõem as vivências dos variados sujeitos. E estas, todas estas, se dão em relação direta com a sociedade que, a todo tempo, os influencia e transforma e que, sim, tem (e deve sempre ter) desses mesmos sujeitos seus contornos.

Contornos, inclusive, na tecnologia que grafa e lê orgulho, afinal, como diria Paulete (discente entrevistada): “É a coisa melhor do mundo, eu chego e assino. Aí eu mesmo sinto orgulho de mim!”.

Sobre os autores
Douglas é historiador e pedagogo. Professor do Departamento de Educação (DE-Ibirité) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: dtlmeduc@gmail.com.

Ruan é educador popular, graduando em pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). É militante do coletivo Juntos e membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Betim. E-mail: debianruan@gmail.com.

Para saber mais
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora UNESP: São Paulo, 2000.

PEREIRA, Dulcinéia de Fátima Ferreira. Educação de Jovens e Adultos: Uma reflexão à luz de Paulo Freire. Revista Educação, São Paulo, v. 1 n.1, p. 1-14 jun-dez. 2009.


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