Direto do baú do isolamento

Valter Machado Fonseca

Após algum tempo; resolvi libertar um pequeno desabafo que me atormenta, um devaneio, daqueles que surgem do nada, em meio ao silêncio das madrugadas. Trago comigo, o tempo todo, dois valores aprendidos com meu saudoso pai, dos quais jamais abrirei mão, sinceridade e coerência e é com base neles que rabisco este singelo texto. 

Estes tempos sombrios, obscuros, que beiram ao barbarismo e pelos quais todos (as) nós estamos atravessando não surgiram do nada, em absoluto, eles têm um grande sentido, muito significado. Esses tempos servem para que façamos uma introspecção profunda, uma imersão em nós mesmos, em nossos pensamentos, em nossas consciências, que busquemos sentido naquilo que parece não ter sentido algum, que nos parece até absurdo. 

São em tempos como esses que surge a oportunidade ímpar de se fazer o balanço de nossas existências, daquilo que talvez nos seja mais caro, daquilo que habita a intimidade mais oculta de nossas consciências. São nesses tempos que podemos medir as coisas, os sentimentos, as emoções, os valores éticos e morais, que podemos comparar a arrogância com a simplicidade, as vaidades com a humildade, a prepotência e o ódio com o amor e a solidariedade. São nesses tempos cruéis, de mortes das consciências, que o universo nos dá a chance, a oportunidade da busca profunda de nós mesmos, de quem somos nós, do “ser” neste mundo. 

Existe um dito popular que afirma que amigos (as) de verdade a gente os descobre nos momentos de sofrimento, incertezas, opacidades, crueldade, angústia. Assim, apesar de parecer um clichê, esta afirmação surge de maneira a comprovar as supostas inverdades que até então pensávamos se tratar de verdades inquestionáveis. É meus caros (as) amigos (as)! “O poço das vaidades não tem fundo” e isto se evidencia em tempos como estes. Pessoas nas quais acreditávamos cegamente, que julgávamos inquestionáveis, emergem dessa realidade cruel como nebulosidades, cujos discursos nos pareciam legítimos e verdadeiros, são, de fato, a afirmação de uma falsa consciência, forjada por elas em tempos ditos “normais” para enganar-nos e talvez até mesmo iludir a si próprios e, esses discursos, dissociados da ação prática no mundo, emergem nestes tempos com toda sua força, com toda sua perversidade.

Desta forma, caras (os) amigas e amigos, por mais contraditório que pareça ser, estes tempos de pandemia, de isolamento social, tem me servido para submergir nas próprias águas que formam o oceano de minha consciência, nas regiões abissais de meu próprio ser. Nos breves intervalos de meus estudos, ao som de uma suave e boa música, ao delicioso sabor do ressonar de minha amada companheira nas madrugadas frias de nossa cidade, muitas vezes me pego a pensar sobre coisas como essas. Aí, após muito relutar comigo mesmo, resolvi compartilhá-las. 

Muitos, que até então eu considerava muito próximos se distanciam, o que me permite compreender o abissal distanciamento entre os discursos e as práticas, verifica-se uma lógica “ilógica” de muitos que, em nome de uma suposta inclusão, excluem cruelmente, pelo simples motivo do outro enxergar o mundo com outras cores, de pensar diferente de suas “verdades dogmáticas”, definitivas. Muitos são os que se agrupam para se proteger de si mesmos, se afirmam supostamente iguais, ignorando, por completo, as diferenças inerentes do ser humano. Criam-se “guetos”, cuja sobrevivência depende da ilusão de uma dogmática, contraditória e constante autoafirmação diante de amplos setores marginais desta sociedade. E, diante disso, estes somente são capazes de perceber o preto e o branco, incapazes que são de perceber as outras cores que compõem o espectro do arco-íris. 

Por outro lado, são também em tempos como estes, sombrios, tediosos, opacos, desnudos, quase vazios, que surgem outros que até então estavam distantes ou, simplesmente não conhecíamos e que passam a fazer parte essencial de nossa existência, entram como tijolos na construção de nossa consciência, tornam-se partes fundamentais de nossa construção como sujeitos históricos e sociais, enquanto seres humanos inacabados que somos, conforme afiança o nosso grandioso e inesquecível Paulo Freire. 

Deixo um beijo carinhoso nos corações de todos, amigos (as). Gratidão a todos (as) que se aproximaram de mim neste momento de tanta angústia e solidão! Gratidão a todos (as) que, apesar de minha incompletude, ainda confiam e insistem comigo ofertando carinho, afeto e amizade. Se, no momento, não consigo mudar o mundo, mudo a mim mesmo, tento acrescentar algo melhor à minha incompletude enquanto ser inacabado. 

Deixo a vocês uma simples frase de Lev Davidovich Bronstein, o Leon Trotsky, “Com absoluta certeza, a história é mais forte que os grupelhos e que os aparelhos contrarrevolucionários” e completo com Dostoievski: “Haverá um tempo em que a miséria e a opressão não serão mais que simples cicatrizes na história”. Fiquem em paz e se cuidem, vocês são deveras importantes para mim!  

 

1 – Pesquisador e Professor Adjunto II do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa (DPE/UFV). Escritor, Geógrafo, mestre e doutor em educação. Pós-doutorado em Educação do Campo, saberes populares e Agroecologia. Pós-doutorado em Ensino de História da África e afrodescendentes pelo PPGHIS/UFOP. Docente efetivo dos Programas de Pós-graduação (mestrado) em Educação (PPGE/UFV) e em Geografia (PPGeo/UFV).


Imagem de destaque: Não há sim sem não – o Eremita, 1985 – António Dacosta – Centro de Arte Moderna (CAM), Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa, Portugal. 

 

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