Dente-de-leão – o menino e o cometa

Ivane Perotti

Virava as folhas com dedos clínicos. Sombras tímidas desprendiam-se da lua. As palavras escritas protegiam-se da escuridão, temendo o apagamento das manobras que as mantinha vivas. Das ilustrações saíam vozes. Um guarda-chuva invisível abria-se na altura da cabeça. O menino cavalgava a história. Abrira leituras de mão, de olhos e de ouvidos. Ágil como rajadas de vento frio no início do inverno, ele cobria as páginas com valentia e coragem. As ambiguidades não lhe cobravam frete. Cavalgava em dorso nu. Por rédeas, as crinas do animal malhado. Amarelo escuro, beirando a cor da terra estrangeira: um cavalo de guerra que se perdera pelas ravinas. Do alto, o menino espiava as trincheiras coalhadas de uniformes que ficavam para trás. Armas de tiro apontadas para o destino de alguém. Barulho e fumaça saíam da mesma boca. Não sentia medo. Agarrado ao cavalo em velocidade de galope, deixou passar longe o século desconhecido, os homens de rosto estranho, os uniformes velhos e gastos. O cheiro de pólvora agarrara-se ao nariz e aos olhos, queimando ambos. Sorrira na cauda do vento que os alcançou. Pólvora? As trincheiras perdiam a nitidez à medida que o cavalo alargava os passos. Cavalo forte. Destemido. Não se impusera quando o menino aportou em sua garupa. Sequer reclamara das mãos que se firmavam nos longos pelos amarelados. Relinchos coroaram a partida. Com a criança por companhia, partiu para aventuras mais condizentes com a sua natureza.

Uma campina florida desenhava-se ao longe. Para lá rumaram o cavalo e o menino. A noite próxima pintava o céu com beliscões de luz. Famintos pela curiosidade, serviram-se os dois. Um, do capim tenro. O outro, das flores esvoaçantes. Dentes-de-leão cobriam a vastidão de terra. Descalça, a pequena criança colhia e soprava as nuvens arredondadas que nasciam por toda a planície. Eram sonhos amarrados em pétalas diminutas, todas no mesmo caule. Soprá-los provocava cócegas e enchia os olhos de magia. Abaixo dos beliscões cada vez mais iluminados, as pétalas quase invisíveis arrepiavam-se em formas e grupos. Juntavam-se. Separavam-se. A dança era seguida de perto pela alegria do menino. Dessa alegria veio o nome. O pequeno batizou o companheiro: Dente-de-Leão. E não se demoraram no deleite. Outras aventuras aguardavam. Como nas mais caras viagens, dormir não se fazia necessário. Sob o teto de lampiões acesos e piscantes, o endereço das estrelas anunciava casa. O abraço do firmamento alcançou os viajantes em convite para as histórias acordarem. E acordaram. De uma página para outra, as cenas eletrizantes ganhavam peso. Desprendiam-se das folhas mal conservadas. Saltavam para fora do livro e para dentro do menino. Conquistavam o direito à ação e à vida.

_ Vamos, Dente-de-Leão. Vamos!

O cavalo cheio de energia estremecia de vontades. Sim! Teria dito, se alguém pudesse tê-lo feito dizer. Sim! Teria relinchado em língua equina, se alguém a imaginasse. Sim! Fazia o pequeno sentir pelo empinar das patas frontais.

_ Eia! Lá vamos nós!

A alegria da criança era combustível sem fim. Da campina coberta de estrelas que espiavam, atentas e parceiras, a planície abriu-se em abrupto despenhadeiro. Entre as paredes de pedra corria um rio de grandes curvas. A água batia nas pedras e borbulhava sua força. Gotículas coloriam o espaço que fica entre o céu e a terra. Um espaço para sentir os mundos criados e tomados para si. Um mundo de sons, cheiros e mãos para puxar bem alto, mais alto, as crianças que imaginam as leituras que fazem. Imaginam e se apoderam de suas escadas para aventuras reais.

Com Dente-de-Leão à frente, desciam pela encosta quando o menino fixou o alto. Vira brilhar antes mesmo da trajetória anunciá-lo: um cometa fazia a linha do infinito beber da água do rio. Entrou na atmosfera em forma de lagarto, com direito a uma elegante cauda bifurcada. Fechado em luz, o astro deixou-se ver pela criança. E se poderia jurar que ambos trocaram acenos. Segredos trocaram. Segredos que tocariam o coração mais trancado. Para honrar aparição tão nobre, a criança chamou os costumes e a crença veio em camaradagem. Fez um pedido. No silêncio corajoso dos olhos tão miúdos e profundos, registrou a solicitação: que se atendesse ao pedido que fazia. Era pouco. Bem sabia. Mas era seu. Um cometa. Um pedido.

Quando o astro finalmente beijou a terra, o menino e o cavalo atravessavam a margem mais larga das águas. Pés e patas chafurdando felicidade. Livres e abundando curiosidades, seguiram o curso do rio. Avistaram outras trincheiras. Fumaça. Homens atocaiados. Muitos sobre o chão de relvas. Armas espalhavam-se. Do alto de uma colina, viram uma cidade. Plantada em um vale, abria suas casas para o fogo das guerras. Qual delas, não sabiam. Mas uma tristeza sem fronteiras invadiu a alma dos dois aventureiros. Cavalo e menino dobraram-se.

_ Mãe! Ainda estamos aqui? Eu, eu li que… eu pedi ao cometa que…

_ Você não sabe ler, meu filho. Você sonhou.

_ Não. Eu juro que li. Bem aqui, ó!

Um livro sem capa pendia das mãos da criança. Encontrara-o no lixão junto com a maioria dos míseros pertences.

_ Você precisa parar de sonhar, menino. A vida é dura. A realidade é cruel.

_ Mãe… me ajuda a encontrar um dente-de-leão?


Imagem de destaque: Freepik

 

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