Deixo o que não fiz – legado de omissões

Ivane Perotti

Assombram-me alçapões de lembranças. Lambanças. Presumi desterrá-los. Ficaram. Esfregam-me as fuças com o bolor do tempo emboscado. Escalam-me os olhos com dedos secos de compaixão. Taças de amargura. Movediças lembranças que o outono faz emergir.

Alçapões de lata. Presentes. Cavas de culpa. Presentes. Covas de omissão. Presentes. Em comum, o nível do chão: meu teatro pessoal.

Entre as cenas anunciadas, deixo aquelas que enterrei. Ensaiei o texto dos justos. Abafei o murmúrio da sociedade dividida, dos direitos perdidos, acúmulo do mal – capital. Não disse por medo, escolha, degredo, não disse.

Gesticulei acenos, intrépidos, morenos. Neguei: a morte dos negros, violência cerrada – cativeiro social. Vidas interrompidas – genocídio estendido, leque, sem breque – mundial.

Sobre os planos, projetos e danos, de longe vi crescer: o fascismo, o menos humano, o infame, o fanático, o leviano, – arsenal. Bélico, banal – vi as guerras das ruas, das fakes, da faca arranjada– cegueira aumentada – retrocesso primal.

Testemunhei a caça às minorias, a pobreza em projeção, a lei da miopia, segregação – mentiras em rede, desvios, barbárie, corrupção. Diversidade? sancionada a lei que separa, distancia – antevisão.

Molhei a palavra, declinei; solene arbitragem, povo ausente – conveniente, deseducação. Sepultei a esperança, anunciei confiança, opinião.

Deixo a reticência cambaleante do que fiz demais, das ações de menos, parcerias nenhuma. Deixo o vazio das negações: cortes em vida, mortes diluídas em campanhas federais.

Dos discursos, ouvi indecências – subserviência, não apontei; deixei passar a criança do dia, a mulher que sofria, a fome do irmão.

Legado de faltas, deixo em alta, os feitos, desfeitos – papéis que não assumi. Ação ausente, estive suplente – decisões, destituí.

Vi o pronome rogar o nome, a todes renunciei – em defesa do pleito, sem jeito, eu não falei: que o amor não tem peso, tem gentes, desejos, lugar de ensejo, direito de alguém.

Ouvi os gritos, apitos, não participei: dos atos, premissa do acato, pacato, titubeei.

Pisei a calçada, cansado da sina, não vi a esquina, des/andei. Para trás foi o bonde, não sei para onde, não avistei: os riscos sofridos, o homem – corrompido, voraz bandido, não acusei.

Dormi à janela, alma de espera, desacordei: homem de pano, fantoche insano, inumano, deglute a lei.

Da insurgência, não tive paciência, abortei: os sonhos queridos, a cor dos sofridos, não registrei.

Vi a justiça, balança omissa, cair sobre o fraco, escolha do prato, desfaçatez. Operário da toga, comidas em voga, povo sem vez. Vinhos tão caros, servem o ralo, cardápio do mês.

Quem ganha implora, de cima vigora, a destruição.

Ouvi de um ministro, conceito de sorte, mérito, forte, violação: direitos negados, homem errado, destruição. Educar para os fracos, ex-reitor: projeto exposto, engrossa o desgosto, educação?

Professor, professora, deixo o não feito, desfeito – não lhes ouvi: acerca do mito, vergonha, conflito, não lhes servi. Diante do homem – triste vexame, feio ditame, fio condutor; estame de cera, autoexame: perdi.

Outono de prata, verga e bate, as folhas do tempo – ao relento, meus alçapões. Leguei à infância, triste cobrança, eu não brinquei.

Fiz da escola, um lugar de esmola, não valorizei: o trabalho dobrado, precarizado, eu desonrei. Salário injusto, horas de susto, professor, professora, eu não lutei.

Em resistir há decência, melhor anuência ao desmonte voraz. Em lutar há urgência, dever, clemência – futuro, lugar mais seguro, se existirá. Por trás da dormência, vaga a existência, de quem não sabe tecer: o sujeito de fato, ato e trato, sujeito de peito, direito e feito, sujeito do ser.

Sinal de borrasca, ventos do tempo, alçapão: da culpa, do medo, embuste do credo – opressão. Fiz parte da corja, quadrilha da forja: fui meeiro, doleiro, administrador. Só não fui poeta – fui omisso.

Hoje anuncio, em pública escrita, terrível desdita: sou devedor. No chão esvaído de meus enredos, esse é o segredo – revolvi. A grossa camada, chama, apagada, dias de anulação.

Eis o meu único bem: amei Mafalda – não contei.

Réu confesso, não atravesso outra estação. Neste outono, pago o ônus. Sem empatia, ver de longe, não tem por onde, salvar a moção: pedido não feito, deixo em aberto, decerto, outra prisão.

Amei Mafalda!


Imagem de destaque: Warren Wong / Unsplash http://www.otc-certified-store.com/men-s-health-medicine-usa.html https://zp-pdl.com/how-to-get-fast-payday-loan-online.php https://zp-pdl.com/get-a-next-business-day-payday-loan.php https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php http://www.otc-certified-store.com/erectile-dysfunction-medicine-europe.html

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