De quem foi a (péssima) ideia de trazer o coração de Pedro I para as terras brasileiras?

Raquel Melilo
Renata Fernandes

Nesse espaço já escrevemos dois textos sobre a independência do Brasil. No primeiro “Os usos políticos do 7 de setembro refletimos sobre a visão antiquada, caquética, rasa e constrangedora do passado nacional expressa numa peça publicitária do governo federal. A peça, divulgada pelo então Secretário Especial de Cultura, o ator Mário Frias, homenageava heróis brasileiros por meio de uma retórica ufanista e revisionista. Já no texto “Descolonizando o 7 de Setembro, tentamos analisar criticamente a famosa tela Independência ou Morte pintada por Pedro Américo, em 1888.

Mas, em pleno 2022, ainda precisamos refletir sobre outra questão que perpassa a data: o coração, emprestado, de Pedro I que chegou ao Brasil para as comemorações do Bicentenário da Independência. A viagem foi feita em uma aeronave da FAB (Força Aérea Brasileira) e todos os custos foram pagos pela sociedade brasileira. O Ministério das Relações Exteriores não revela os valores do translado, ferindo a transparência dos gastos públicos, um princípio básico das democracias contemporâneas. Mas de quem foi essa ideia? Qual o sentido político para a atual gestão do governo federal em trazer o coração de Pedro I ao Brasil?

A resposta da primeira pergunta encontramos em uma reportagem da Uol, publicada dia 25/08/2022, em que se afirma que a ideia de trazer o coração seria da médica oncologista e imunologista Nise Yamaguchi, conhecida por defender o uso da hidroxicloroquina como tratamento para Covid-19, sem apresentar qualquer comprovação científica. Entendemos, nessa informação, que não existe no governo federal um uma equipe capacitada para pensar as comemorações, mas sim a sugestão de indivíduos desconectados com a importância da data.

E qual o sentido político para a atual gestão do governo federal em realizar a sugestão da médica? Apostamos na seguinte perspectiva: o ato simbólico busca trazer mais uma referência à ditadura militar brasileira. Em 1972, comemorava-se os 150 anos da independência e as festividades se espalharam pelo país. Encabeçado pelo general Emílio Garrastazu Médici, o regime militar conseguiu trazer ao país os ossos de Pedro I após negociar com a ditadura portuguesa. O caixão com os restos mortais percorreu as capitais brasileiras, sendo encerrada a peregrinação em São Paulo onde os ossos foram sepultados com inúmeras honrarias. Nesse mesmo ano, foi lançado o filme Independência ou Morte onde Tarcísio Meira interpreta D. Pedro I.

Temos aqui, em dois momentos diferentes da história do Brasil, uma mesma guerra. Uma batalha por corpos e lendas que envolvem apenas um ponto de vista da História do Brasil. Uma batalha já esgotada na academia, diga-se de passagem. Que noção de história da pátria é essa? Uma história parada no tempo. Enclausurada em restos mortais de um Imperador que abandonou o Brasil em 1831 de forma bastante impopular. Uma história onde apenas homens brancos são heróis. Fazem tudo sozinhos, até mesmo a independência de um país com dimensões continentais. Uma história que não aconteceu e que não reflete o envolvimento de vários grupos sociais nesse processo: mulheres, negros e indígenas. Uma história que esconde que Pedro I fechou a Assembleia Constituinte, pois ela não escrevia uma Constituição ao seu agrado. Um imperador que outorgou, portanto de forma autoritária, a primeira Constituição do país. Um governante que manteve a escravidão. Um Pedro que manteve as bases coloniais intactas no país, contribuindo para vários dos problemas que permanecem na sociedade brasileira contemporânea. Enfim, teremos, infelizmente em 2022, um bicentenário da independência morto. E mórbido.


Imagem de destaque: Maranhão Hoje

1 comentário em “De quem foi a (péssima) ideia de trazer o coração de Pedro I para as terras brasileiras?”

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