De fazer inveja em Cervantes

Octávio Henrique Bernardino Ribeiro*

A construção de figuras messiânicas na política é perigosa, porque a realidade dos fatos não basta para desconstruir a aura mística em torno da liderança. A crença em uma designação divina acessa um espaço peculiar da crença individual e, pelo fato de atingir foro tão íntimo, fomenta o maniqueísmo que opõe o eu e o outro, uma perspectiva cruzadista atribulada pela oposição do concreto ao abstrato. Nessa prática quixotesca não foram os romances de cavalaria que confundiram a percepção da elaboração das narrativas históricas, uma vez que a sátira se materializa pelo despejo de anos de ressentimento de um conservadorismo moral que perde espaço em face de uma sociedade mais humanizada.

Dom Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, perde a razão dos pensamentos após a leitura de vários romances de cavalaria e parte em busca de viver como seus heróis, entre uma aventura e outra ele sente o impacto de suas fantasias sendo desmentidas em contraposição à realidade. O personagem sofre por crer em percepções que não faziam mais parte de sua época, sofre com um distúrbio anacrônico por desejar viver um idealismo superado por seu próprio tempo, a amargura de não conseguir sobrepor a imaginação ao real vem acompanhada de uma série de justificativas para sustentar seus argumentos particulares.

Desde a infância é apresentada à nossa percepção a ideia de confronto entre o bem e o mal, o certo e o errado, que de certa maneira molda nossa visão de mundo. Sendo assim, colocamos nessa balança moral as figuras que nos são apresentadas, inclusive a nós mesmos. Acreditar que teremos um teste de bravura para afirmar nosso heroísmo, pode fazer com que busquemos a oportunidade de provar nosso valor numa luta contra gigantes, essa epopeia que requer esforços e valentia, alimenta a paixão. É uma espécie de provação de valores pessoais, novamente para não ceder espaço ao inimigo não podem recuar um centímetro, apesar do empenho de figuras como Sancho Pança, o fiel escudeiro, em apresentar uma visão mais realista dos fatos que ambos vivenciam.

O “eu sou” em algumas oportunidades está mais cheio daquilo que não queremos ser em detrimento àquilo que queremos nos aproximar, pois o “eu” existe em contraposição ao outro, tendo escolhido o inimigo a ser combatido, aquilo que acreditamos ser pode enrijecer a nossa capacidade interpretativa a partir de um ideal. Em uma de suas mais famosas passagens, Dom Quixote despende de muito tempo e persistência combatendo seus gigantes imaginários, a representação do mal. Apesar dos alertas de seu escudeiro de que se tratavam apenas de moinhos de vento, o cavaleiro segue com suas investidas contra as pás das hélices, após um forte impacto causado por um golpe de uma destas, ele cai. A realidade às vezes nos atinge com força desmedida para reconstruirmos nossas concepções daquilo que nos rodeia, mas o pobre cavaleiro cego por suas crenças, inventa mais uma justificativa para reafirmar seus valores, acusando um mago de ter transformado os gigantes em moinhos apenas para enganá-lo. Tem sempre a ver com o “eu”, posto como alvo diante dos inimigos. Assim, o que acontecer ao entorno é para atingir a minha persona, possibilitando um leque de justificativas para se colocar em posição de defesa cada vez mais rigorosa, afinal de contas, não se tratará mais de uma disputa de narrativas baseadas em fatos, mas em crenças, mesmo aquelas que “eu” mesmo quis acreditar.

O imaginário contrapondo a realidade, o senso comum contrapondo a ciência, é uma luta contra moinhos de vento que não terá um fim a menos que se desconstrua essa ideia da narrativa de heróis em tempos que não mais os cabem. Para não confundir frades com feiticeiros, rebanhos de ovelhas com exércitos e moinhos com castelos, é realmente importante a leitura, de estudos à literatura, ampliando a capacidade de interpretação da realidade para construção de senso crítico. A EJA por atuar principalmente com pessoas que enfrentam várias dificuldades para estudar, ou que já estão em fases mais avançadas da vida, é poderosa arma contra a desinformação, em favor de processos educacionais que corroboram com uma sociedade justa e igualitária. A educação libertadora é uma das forças de transformação para que os sujeitos, sobretudo periféricos, não caiam em engodos dos discursos da necropolítica.

Nesta batalha não usaremos espadas ou bradaremos nossos gritos de guerra, empunharemos livros e vamos ouvir antes de falar.

*Professor da Rede Estadual de Educação de Minas Gerais e de cursinhos populares. Licenciado em História (FAFICH/UFMG). Especialista em ensino de História (PUC/MG). Mestrando do Promestre na linha da EJA (FAE/UFMG).


Imagem de destaque: Dom Quixote. Ilustração de Gustave Dore, na tradução de J. W. Clark (1880). Fonte: Projeto Gutenberg.

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