Da tela ao chão da escola: pensando o corpo na educação

Rayane Ribas Martuchi

Como se educa sem corpo? Mais de dois anos de pandemia da COVID 19 e durante esse período vi partes de corpos infantis reduzidos a uma tela, por onde se projetava algo parecido com uma lousa, outras carinhas compunham um tipo de quebra-cabeça 3×4. O chat fazia as vezes do recreio, espaço contido onde as crianças podiam interagir, mas sem corpo, sem gritaria, sem corre-corre. O “quebra-cabeça” visto da minha própria tela, e que eu também compunha, me reduzia a uma cabeça, sem corpo. Se a intenção era só ter cabeças ali, a tela que se dizia ser uma escola e a metáfora do quebra-cabeça serviram, e muito.

Em setembro de 2022 voltei a pisar no chão de uma escola, há algum tempo que não o fazia, sobretudo residindo em outro estado, sobretudo em um contexto de recém abertura escolar após mais de dois anos de pandemia. A chegada ao campo tinha como mote inicial trabalhar as relações interpessoais entre as crianças desde a volta delas à escola.

Estar presente na escola nesse contexto dito “pós pandêmico”, ainda que a pandemia estivesse em curso, me fez perceber a presença latente do corpo das crianças, havia sempre contato físico entre elas, ou pela via da amizade, com abraços e carinhos, ou pela via do conflito, com brigas, discussões e provocações ao corpo alheio. O corpo adulto não passa ileso na escola… “tia, posso ver sua tatuagem?”, “olhaaa, a tia também tem um risquinho no cabelo”, “tia, você tem quantos anos mesmo?”, “tia, você já se apaixonou por alguém quando tinha a minha idade?”, “seu sotaque é diferente, você não é do Rio!”. Os olhares minuciosos e perspicazes das crianças percorrem também os nossos corpos, vestimentas, adereços, modo e tom de fala, as crianças parecem insistir em convocar o corpo a se presentificar na relação com elas, com a escola, e com nós mesmos.

Se, para as crianças, a “escola não pode ser um monte de janelas com o rosto das pessoas, sem poder ver e tocar” (MATTOS et al., 2022, p. 415), como ficou a dimensão corporal das crianças durante a pandemia? Como aprender sem toque, sem construção de vínculo presencial, sem a interação que uma escola pode oferecer?

Vozes, barulhos, abraços, alarmes, silêncios, cheiros, brincadeiras, cores, brigas, empurrões, toques, choro, risada, colo, corpos. A escola é um lugar de corpos em constante interação, e perceber essa dinâmica corpórea na escola de hoje comunica algo sobre os últimos anos de circulação, toque e corpos restritos devido à pandemia. Pois, se avaliarmos que muitas crianças passaram um grande período de suas vidas sem convívio com outras crianças e adultos externos ao seu círculo familiar, podemos pensar que a dimensão relacional no processo de subjetivação das crianças sofreu impactos como os observados em campo. É preciso ainda levar em consideração o fato de que, para crianças, o período de tempo de dois anos não é o mesmo para uma pessoa adulta. Proporcionalmente à idade de uma criança, dois anos equivale a um período de tempo muito maior do que para um adulto que já viveu muitos anos a mais. Não considerar esse dinamismo temporal na experiência das crianças na pandemia é ler a realidade a partir da lente adultocêntrica que toma a si mesmo como referência.

Se o corpo é a via privilegiada por onde se educa, ela se faz tanto para fins normativos, quanto para as transgressões. Através das experiências sensoriais que a escola nos faz imergir é possível ler uma série de normas, valores e práticas institucionais. Vivenciar esse campo com certa porosidade de sentidos para ver, sentir e ouvir para além do que está sendo dito e mostrado ajuda a manter nosso olhar atento às armadilhas da normatização que toma a realidade como dada, e não como construída, uma vez que as práticas institucionais de tão reiteradas passam despercebidas aos nossos olhos. Parece, então, que o exercício do estranhamento é uma saída para criar transgressões possíveis.

O corpo é o locus de experimentação de si, do mundo, em sua dimensão relacional, social e política. Como aponta bell hooks, a descorporificação do processo de educação é um projeto colonial que parte da ideia de um ser universal, neutro e excessivamente racional, onde o corpo, o desejo e a paixão são desconectados do processo de aprendizagem. Portanto, se é através do corpo que se ensina e se aprende modos, possibilidades e interdições de existir, como podemos nos abdicar dele no ambiente escolar?

Sobre a autora
Rayane Ribas Martuchi é Psicóloga e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGPS UERJ e bolsista CAPES.


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