Da educação pública e seus defensores (ou o difícil equilíbrio entre ignorância e ideologia)
Marcus Aurelio Taborda de Oliveira – UFMG/CNPq
Na semana passada acompanhamos um conjunto de manifestações que estranhavam a audiência do ministro da educação com o ator Alexandre Frota e outros dois representantes do “movimento” Revoltados Online, que defende, entre outras coisas, a Escola sem Partido. Provavelmente porque, pelo que se tem notícia, nenhum dos três se ocupa de temas ligados à educação. A assessoria do ministro, diante das reações a tal audiência, imediatamente argumentou que o titular da pasta receberá a todos, indistintamente. Desse ponto de vista poderíamos exultar, afinal, o esforço “republicano” do ministro, pois atenderá a todos, em um claro elogio das práticas democráticas… Lembremos que o governo recentemente “deposto”, embora se movesse bem com empresários, tinha imensa dificuldade para receber os movimentos sociais. Ou seja, ventos mais auspiciosos soprariam na trôpega democracia brasileira!
Talvez o único equívoco do ministro tampão nomeado pelo ilegítimo presidente que dá as cartas em Brasília, hoje, tenha sido o fato de começar o seu exercício “democrático” recebendo pessoas e grupos com quem o seu partido já tinha uma boa convivência ideológica antes da tomada de poder, ou seja, gente da sua “família”. Assim, toda a denúncia pela ideologização protagonizada pelas visitas cai por terra, embora essa turma não se veja nunca como portadores de “ideologia”. Ideologia só os outros têm! Mas o que é ainda pior, o ministro recebe gente sem nenhuma expressão no que tange aos debates sobre a educação no Brasil, quando este é um país que tem profissionais, pesquisadores, associações, movimentos sociais que se dedicam ao tema como expressão de projetos de intervenção social, política e cultural. Ou seja, se o tempo do ministro permitirá que ele atenda a todos, o que é louvável para a democracia, pelo menos ele poderia começar por quem se ocupa da matéria da sua pasta, não como uma aventura ou ressentimento, mas como uma maneira de tentar fazer desse país alguma coisa pelo menos um pouco melhor.
Mas no obscurantismo que tomou de assalto o Brasil com a chegada desse inominável interventor ao poder presidencial, não deveria estranhar que o ministro ouça qualquer um para resolver os problemas da educação nacional. Muitos vão acusar o argumento de corporativo, mas penso se chamaríamos qualquer um para fazer ou prescrever intervenções cirúrgicas, para conduzir aviões, ou mesmo para interpretar e aplicar a lei… Não chamamos qualquer um para resolver os problemas de encanamento da nossa casa ou trocar peças do carro. Não estou defendendo a hiper-hermética cultura dos especialistas, embora devamos perguntar porque no Brasil se fomenta tantos cursos de formação de professores, porque se autoriza o funcionamento de tantos programas de pós-graduação e se financia tantas iniciativas nesse âmbito, se a educação parece ser um daqueles domínios de “papo de boteco”, onde cada um acha o que bem entende e, mais, acha que os outros tem que aceitar os seus desvarios. Então, se esse país investe tanto tempo e recursos na formação de quadros qualificados para a educação, porque não começar por ouvi-los, ministro? O ministério poderia ter inovado, no sentido democrático, recebendo professores escolares, por exemplo, quem mais entende dos problemas das salas de aula brasileiras, e a quem tecnocratas, políticos e muitos especialistas costumam ignorar. Mas preferiu começar pelo achismo carregado de senso comum, preconceito e agressividade…
Creio que isso é parte dessa tragédia chamada Brasil. Demonstrando absoluto desconhecimento do que acontece nas escolas brasileiras, o grupo voltou a atacar aquilo que o redivivo conservadorismo brasileiro chama de “ideologia de gênero, além da “ideologia política”. Para o ator Alexandre Frota as escolas brasileiras ensinam comunismo. Ou melhor, ele já estaria implantado nas salas de aula! Para a procuradora Beatriz Kicis “…já está provado que ideologia de gênero nas escolas ‘faz mal’ para a cabeça dos jovens, das crianças e dos adolescentes. Essa coisa de dizer para criança que ela não tem sexo definido, que pode usar qualquer banheiro, faz um mal terrível.” (Brasilpost, 25/05/2016). Terrível é a disseminação desse senso comum! No primeiro caso, o conhecimento do dia-a-dia das salas de aula por parte de Frota deve ser vastíssimo! Afinal, a sua afirmação não deixa dúvidas: a escola brasileira é um celeiro de formação de potenciais revolucionários. Pessoas que matam velhinhos e comem criancinhas… Isso partindo do entendimento que Frota compartilhe o sentido mais vulgar do que seria comunismo. Porque se ele conhecesse um pouco do que é o pensamento político ou econômico desde o século XIX, não teria tanto medo de colocar em debate visões de mundo antagonistas, como bem lembraram recentemente e Contardo Caligaris (FSP, 19/05/2016) e Helio Schwartzman (FSP, 20/05/2016). Até porque, do ponto de vista da realidade política e econômica, o capitalismo suplantou o comunismo…
Já, sobre a impressão da procuradora Kicis, chega a assustar a ignorância em relação ao debate sobre gênero, que não se confunde com sexo. Provavelmente na sua casa há banheiros separados para as pessoas conforme o seu “sexo”, de modo a não “poluir” a cabeça dos seus familiares. Além disso, ela parece ser uma grande conhecedora da psicologia, da psicanálise, das neurociências… Sem falar da sociologia, da antropologia ou da história. Afinal, para afirmar com tanta segurança que a ideologia de gênero faz mal para a cabeça de crianças, adolescentes e jovens, imagina-se que ela deva ser uma grande conhecedora não apenas do assunto, mas do funcionamento do cérebro humano e de todos os processos de formação engendrados pelas diferentes sociedades humanas ao longo do desenvolvimento da cultura.
O que faz mal, de fato, e fará cada vez mais, é não superarmos essa prática falsamente democrática que cada um pode falar o que quer, onde quer, para quem quiser, sem consequências. Prática alimentada por todo tipo de demagogia, populismo e oportunismo político, à direita e à esquerda. O “achismo” que tem marcado o debate público no Brasil, sem o crivo de uma condução política consequente, e sem argumentos solidamente fundamentados, apenas inviabiliza a possibilidade de vislumbrarmos os nossos problemas no seu pleno alcance.
A educação escolar no Brasil está na UTI faz tempo, e a educação privada está longe de ser muito melhor que a pública, como muitos gostam de alardear. Agora, a UTI a que me refiro acolhe a penúria de formação inicial e continuada de professores, das suas condições materiais e salariais, a precariedade da infraestrutura das escolas, uma visão torta, pela qual a universidade é largamente responsável, que tudo é cultura, logo, tudo deve ser compreendido e tolerado, entre vários outros aspectos que os tecno-burocratas não veem como problemas. Há grandes equívocos nessas representações. O pior deles talvez seja a falta de capacidade de perceber que a democracia é o exercício constante da convivência das diferenças. Que, portanto, a escola pública deve ser radical no que se refere à compreensão das diferenças justamente para que possamos construir uma sociedade onde a (con)vivência seja possível, e onde o interesse de alguns indivíduos ou grupos não se sobreponham ao interesse e ao direito de todos.
Logo, se entendermos ideologia no sentido mais amplo e mais frágil de visão de mundo, então é na escola que o exercício e o debate sobre diferentes “visões de mundo” pode significar um contraponto em relação aos dogmas familiares ou de grupo. Isso no que se refere à política! Em relação ao gênero esse é um preceito legal constantemente negado por algumas mentes turvas: ninguém deverá ser descriminado por orientação religiosa, étnica, de gênero, de cor etc. Esse é o argumento mais simples e mais óbvio. A senhora procuradora está procurando no lugar errado… Há um direito garantido, e a escola deve discutir não apenas a lei, mas a conquista de direitos. Isso seria, inclusive, republicano. Mas o fator preponderante de incômodo é a teimosia dessa turma em não olhar para a realidade e observar quanta gente vive à sua maneira o que eles chamam de “ideologia de gênero”. Sem se importar ou se preocupar com o que os outros fazem das suas vidas, inclusive, sexual! Simplesmente vivendo e dando sentido para a sua vida. Assim, a menos que a angustiada procuradora seja capaz de nos provar porque isso tem feito mal para os jovens, por que não deixar que as pessoas decidam sobre as suas vidas, e por que não respeitar e aceitar as suas decisões? Caso seja possível dizer que uma parte significativa dos brasileiros, e do gênero humano, são vítimas de um “mal terrível”, para além dos efeitos nefastos desse pensamento conservador e reacionário, aí talvez possamos promover a mudança dos currículos, dos comportamentos, da lei e, quem sabe, tornar a educação escolar uma prática asséptica, portanto, menos humana.
Admitida a ideia que o senso comum é a matéria prima do conhecimento, não devemos perder de vista que uma expressão possível desse senso comum é a cristalização de toda sorte de preconceitos e de afirmação de uma visão de mundo (ou ideologia) como melhor e mais legitima que outras, independentemente do seu obscurantismo. Muita gente tem medo que se ensine o que chama de comunismo nas escolas, como é o caso de Frota e seus asseclas, mas não raramente se faz a defesa do ensino do empreendedorismo, da competitividade, como se isso não fosse uma clivagem ideológica. E é aí que a escola pública cumpriria o seu papel mais relevante. Mostrar como determinadas “verdades” foram construídas, bem como os jogos de poder por traz de visões de mundo tomadas como “boas”, “mais corretas”, “naturais” e “universais”. Ou seja, à escola caberia mostrar para os alunos as diferentes possibilidades de ver e pensar sobre as coisas, para que eles pudessem decidir, um dia, o que mais lhes convém para o exercício da sua própria vida. E para que aprendessem que a vida dos outros não lhes pertence. Ou mesmo que aquele restrito e mesquinho universo familiar no qual vivem não é suficiente para enfrentar a complexidade do mundo. Isso não é ideologia, nem de gênero, nem política. É parte fundamental de um processo de formação que mereça ser chamado assim.
Talvez seja demais pedir critério para o ministro, até porque nem sabemos bem porque ele é ministro da educação. Mas não é demais reivindicar que o debate público sobre educação seja parte de um debate mais amplo sobre saúde, cultura, previdência, economia. Essas últimas, então, consideradas intocáveis pelos especialistas desse e de outros governos. Porque qualquer um pode falar o que quiser sobre a educação. Mas se denunciarmos que as políticas econômicas são feitas para enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres, logo seremos identificados como traidores da Ordem e do Progresso e comunistas ensandecidos. Assim, Frota e seus amigos poderiam participar também desses debates tentando qualifica-los um pouco mais…
O que se espera é que um ministério que se prese se alimente com a opinião de todos efetivamente, considerando, principalmente, décadas de debates, sugestões, estudos, propostas e projetos organizados por educadores que fazem desse tema uma opção de luta política e cultural. Não apenas como uma aventura oportunista, eivada de preconceito e senso comum, contra outras formas alternativas de ver e viver o mundo. Se não for para agregar argumentos de interesse de todos – falamos da educação pública – por favor, não seja sectário, ministro. Por que tanto a escola pública como um ministério da educação deveriam ser instâncias de combate à ignorância e à intolerância, e não do seu fomento.