Cruella é cruel? Tensões criativas sobre o desenvolvimento humano

Marcelo Silva de Souza Ribeiro1

Felizmente as discussões em relação às origens e influências acerca do desenvolvimento humano são revigoradas à medida que novos conhecimentos são produzidos, ainda que venham privilegiar um certo olhar. As tensões entre as perspectivas inatista-organicista, ambientalista e mesmo a compreensão de viés espiritualista, como a ideia de destino, estão longe de serem pacificadas, mesmo com as compreensões interacionistas, que tentam uma via de superação desses olhares. 

Digo “felizmente” porque entendo que as discussões tensionadas podem ser criativas no sentido de possibilitar compreensões aprofundadas e renovadas. Ademais, talvez seja mesmo essa questão acerca do desenvolvimento algo que faça parte do jogo do desvelar-velar, do conhecer e do inaugurar desconhecidos, próprio da condição humana.

Recentemente, a convite de minha filha para um programa de família, uma adolescente de 13 anos, fomos assistir o filme Cruella (da Disney, 2021). Não irei fazer spoiler, mas o filme traz a tendência meio recente de dar voz a vilões. Até aí tudo bem. O que me chamou atenção, contudo, é que o enredo aborda o comportamento da personagem principal (Cruella) marcado pelas tensões de perspectivas inatista-organicista, ambientalista, a ideia do destino e mesmo as possibilidades interacionistas. Cruella é “cruel” porque sua mãe é assim? Cruella foi amada por outras pessoas e isso a fez diferente? Cruella não consegue romper com o seu destino? Cruella é singular e vai se constituindo como Cruella via suas relações e acontecimentos? O filme ainda lança a curiosidade para saber como será mesmo que Cruella irá se constituir após desfecho final. Qual caminho ela irá seguir?

Reflito que a discussão em torno das origens e influências do desenvolvimento humano, sobretudo em relação às fases da infância e da adolescência (que são fases eminentemente iniciais e constituidoras), são potentemente ativas mesmo que, por algumas ondas do momento, se ache como que pacificadas. Avalio ainda que é importante, por exemplo, manter aquecida a discussão e que olhares novos possam ser lançados e contrastados. 

Durante um tempo, o entendimento evolucionista acerca do desenvolvimento humano, sobretudo de matiz mais inatista, sofreu fortes críticas, algumas necessárias e outras questionáveis. Havia aquela ênfase nas influências hereditárias que culminaram em caricaturas do tipo “filho de peixinho, peixinho é”. De maneira oposta, a matiz mais culturalista (de base ambientalista) abriu espaço para compreensões descoladas e liberadas de certos entendimentos do que seria a “natureza humana”. Era aquela ênfase que aposta no humano como um papel em branco e que tudo ali seria escrito a depender do meio. Entre um balanço e outro, para ficar na metáfora dessa “gangorra”, a matiz mais culturalista deixou escapar ensinamentos fundamentais e vice-versa. 

Assumir uma perspectiva acerca do desenvolvimento é importante para aprofundar conhecimentos, mas antes pela via do diálogo que sempre envolve, em algum momento, tensões. Via de regra essas tensões são essencialmente criativas porque renovam as respostas e produzem novas perguntas. 

Talvez o filme Cruella, ainda que sem a intenção em seu roteiro, legue o entendimento que cruel seria dar por encerrada a discussão sobre o que é o humano.

1Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br


Imagem de destaque: Disney plus / Divulgação

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *