Copa no Qatar desafia o poder de revolta e o frágil relativismo cultural 

Alexandre Fernandez Vaz

Não é sem controvérsias que se desenrola a XXII Copa do Mundo de Futebol Masculino, no Qatar, pequeno país da Península Arábica, exportador de gás e petróleo, um dos mais importantes players do mercado mundial. Partidas bem ou mal jogadas, zebras ou resultados esperados, emoção ou tédio, linhas baixas ou altas, dentro do campo tudo é mais ou menos o de sempre, com, aqui e ali, uma ou outra particularidade.

Inédito é que a competição se realize em um país do Oriente Médio, embora não seja de se surpreender, já que se trata de nação governada por uma monarquia riquíssima, proprietária, entre tantos ativos, do clube de futebol Paris Saint Germain. Como o esporte é um espetáculo lucrativo, sendo o Mundial um dos eventos com maior difusão, faz todo o sentido que o Qatar o promova. Ademais, como se lê na imprensa, o esforço de trazer a Copa para o interior de suas fronteiras tem a ver com a tentativa de apresentar-se com uma boa imagem para o mundo.

Isso não se dá sem motivos, já que a reputação do país em relação a temas sensíveis, como direitos humanos, não é das melhores. Se considerarmos os melhores padrões do Ocidente, a vida lá de mulheres, homossexuais e outras minorias políticas é alvo de constante ameaça, sendo crime algumas práticas que, entre nós, em que pese o preconceito e tudo que dele deriva, são, ao menos formalmente, aceitas. Em linha com isso, A FIFA e os catarianos suscitaram manifestações políticas durante o torneio. Entre muitas situações, galeses foram impedidos de adentrar uma das praças esportivas vestindo chapéus com as cores LGBTQIA+, enquanto à seleção da Bélgica foi vetado o uso de seu uniforme número dois porque trazia mensagem de diversidade e inclusão.

Mas, como o desejo costuma resistir, os protestos se deixam ver em diferentes situações, especialmente dentro dos estádios, quando a possibilidade de repressão é menor. Notável foi, anteontem, que os jogadores da seleção alemã tenham posado para a foto oficial que antecedeu a derrota frente aos japoneses, tapando a boca. Protestavam porque o capitão Manuel Neuer não foi autorizado a portar a braçadeira com a inscrição one love. O símbolo pró diversidade foi ostentado, no entanto, pela ministra Nancy Fraser, que representava o governo de Berlim. O goleiro, por sua vez, tapou a embraçadura oficial na referida foto.

São todas louváveis as iniciativas críticas em defesa da liberdade e dos direitos humanos, mesmo que a realidade não permita muito otimismo. Apesar das críticas e da chance de mostrar, com tantos meios de comunicação disponíveis, a falta de democracia no Qatar, as coisas não devem mudar muito. Afinal, quem tem os recursos naturais que interessam ao Ocidente são os membros da família real do país. Enquanto perdurar o modelo de desenvolvimento baseado no petróleo, vai ser assim. O capitalismo se deixa, às vezes, arranhar, mas nada mais. Foi desse jeito nos Jogos Olímpicos de 1972, quando Avery Brundage, presidente do Comitê Olímpico Internacional declarou que “The games must go on”, mesmo depois do massacre dos atletas israelenses; aconteceu de forma semelhante no Mundial de 1978, jogado na Argentina, sob violentíssima ditadura militar.

Mas há ainda um outro elemento a ser considerado. O que demandamos do Qatar é que o país assuma valores ocidentais, como democracia, direitos humanos, autodeterminação individual, liberdade de consciência e sobre o próprio corpo, igualdade de direitos, universalidade ética etc. A maioria de nós considera (eu inclusive) que eles são melhores do que os praticados em boa parte do Oriente Médio. Mas, essa pauta nascida na Europa e aperfeiçoada em outras partes do mundo deveria ser assumida por um país que não compartilha dessa história e vive outras experiências sociais? Não estaríamos defendendo a imposição cultural?

Em tempos recentes a cultura ocidental foi supervalorizada de forma canhestra por Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo. Tal defesa se dava e se dá em oposição à emergência na cena pública de novos saberes e forças políticas, de uma pauta e de um conjunto de práticas que ajudam a ampliar direitos. Afastemo-nos do ex-astrólogo e do ex-chanceler, mas não renunciemos à tradição do Ocidente. Ao contrário, assumamo-la em sua radicalidade, ou seja, sem prescindir da crítica e da autocrítica. Sim, é preciso apostar no Iluminismo, que nos prometeu liberdade, igualdade, fraternidade.  Isso não quer dizer anular saberes que lhe são concorrentes, aqueles não necessariamente universais, mas locais; ao contrário, é saudável manter uma produtiva tensão entre posições que, numa sociedade complexa como a nossa, enriquece nossas vidas. Mas, o perigo mora ao lado, e ele é o irracionalismo que nos ronda e agride. Eis o que precisamos combater.

 

Para saber mais 
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 576 p.

MACDONALD, Kevin. One Day in September. BBC Films/Passion Pictures, 1999. 94 min. (documentário).

ROUANET, Sérgio Paulo. A razões do iluminismo: São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


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