Nos anos 1960 Theodor W. Adorno tornou-se uma celebridade em seu país natal (ou no que sobrou dele depois da cisão em dois estados), a República Federal da Alemanha. Sua participação na vida pública era intensa, proferindo conferências, compondo mesas de debate, ministrando seminários para centenas de alunos, posicionando-se criticamente a respeito de muitas questões, entre elas, a reelaboração coletiva do recente passado nazista, as leis de exceção, o fascismo admitido em meio à democracia.
Adorno foi também com frequência perguntado sobre muitas coisas, desde qual seria o livro que mais lhe impressionara em determinado ano, até o que poderia dizer sobre a saudação entre duas pessoas por meio de um aperto de mãos. À inusitada questão (mais exatamente, como lemos em suas Obras reunidas: Aperto de mão – símbolo de boa vontade. Deve-se ou não?), o filósofo respondeu o seguinte “Vivenciei com frequência em países anglo-saxônicos, que a nós alemães nos apertassem a mão. Há mesmo algo de arcaico nisso, que não combina com a racional civilização ocidental. Por outro lado, não me são simpáticos aqueles que não me dão a mão para um cumprimento, ou o fazem estendendo-me apenas o dedo mínimo”.
Em tempos em que um corpo quando encontra outro em ambiente não privado deve manter distância, lembrei-me dessa passagem que ilustra, talvez como nenhuma outra, a dialética entre o ser humano e o que poderíamos chamar de sua natureza. O ato de estender a mão a uma pessoa tem origem – ao menos uma delas – na disposição medieval em mostrar que não se está armado, ou seja, é gesto de apaziguamento em um momento que podia ser de medo, tensão, alerta frente a um possível agressor. Mas há o outro lado que coexiste com este, que é o calor que isso pode trazer, a aproximação entre dois em que o impulso mimético joga um papel importante. A firmeza do movimento traria, então, calor, segurança, paz. De fato, é o caso de reconhecer em nós e entre nós uma dimensão agressiva que a civilização e a cultura tentam aplacar, mas que tampouco deve ser recalcada, mas transvalorada, preservando-se assim o momento espontâneo que ela comporta.
Sob a pandemia da covid-19 não devemos nos aproximar, seja porque gostamos das pessoas, seja porque respeitamos a condição humana e temos responsabilidade com a vida de todos e de todas à nossa volta. Não é assim que o Presidente da República tem agido. Já se tornou costumeiro que aos finais de semana ele se desloque por Brasília acercando-se de simpatizantes e populares, cumprimentando-os e deixando-se fotografar com eles, tendo chegado até mesmo a trazer ao colo uma criança. Parte de seus seguidores tem agido da mesma forma, ainda que alguns não se dignem a sair do automóvel, por preguiça, covardia, ou porque no fundo estão cientes do perigo.
Com a publicidade da reunião ministerial de 22 de abril último – aniversário da chegada das naus portuguesas ao que hoje é o Sul da Bahia – o país pôde confirmar algumas impressões. A quantidade de palavrões pronunciados, o desprezo pela matança da pandemia, a proposta de oportunismo do Ministro de Estado do Meio-ambiente, as sugestões de encarcerar prefeitos e ministros do Supremo Tribunal Federal, nada disso foi, de fato, surpreendente. De qualquer forma, não deixou de chamar a atenção o inconformismo de Jair Messias em relação à ausência de armas com os cidadãos que, com elas, poderiam ir às ruas e reivindicar sabe-se lá o quê. Povo livre seria povo armado.
Se a história clandestina do Ocidente, que o fascismo trouxe à luz (e agora outra vez) é a de amor-ódio pelo corpo, como escreveram Max Horkheimer e Adorno, não se aproximar é hoje romper com isso, é ato de respeito, de amor à humanidade. Já sabemos que para o fascismo os corpos que ele vê como abjetos devem ser deixados à morte ou simplesmente ser assassinados: corpos indígenas, lésbicos, gays, trans, mendigos, velhos, o que forem. Se não abjetos, então que sejam rebaixados a nada mais que objeto. É por isso que quando uma mulher ousa ser livre, ela deve ser imediatamente atacada.
Há algo de macabro nos atos do ex-capitão, quando sai às ruas em passeio desestabilizador pelo Distrito Federal. O fato de não portar uma pistola (segundo diz, a sua mora na mesa de cabeceira) não evita que se mostre como um perigo. Bolsonaro é portador de si mesmo, de um corpo que ameaça com a disseminação do vírus e com o exemplo que legitima o contágio. Contágio que é viral, mas também de ódio, caos, destruição.
Adorno elevou o aperto de mão à reflexão filosófica, Bolsonaro o desmoralizou ao transformá-lo em produtor de medo. O fascismo odeia o corpo porque não pode suportar o desejo que nele se engendra.
Imagem de destaque: José Cruz/Agência Brasil zp-pdl.com zp-pdl.com https://www.zp-pdl.com