Gisele Gutstein Guttschow*
Marilândes Mól Ribeiro de Melo
A história se comunica de algum modo consigo mesma, reflete-se nela própria. A relação dóxica com o mundo natal é uma relação de pertencimento e deposse na qual o corpo possuído pela história se apropria de maneira imediata das coisas habitadas pela mesma história. É somente quando a herança se apropriou do herdeiro que o herdeiro pode se apropriar da herança (BOURDIEU, 2001, p. 185)¹.
Historicizar-se é um ato de reconhecer-se enquanto agente capaz de olhar para si com racionalidade. Esta é a proposta que a disciplina de História da Educação procura desenvolver com estudantes de primeira fase dos cursos de Licenciatura em Ciências Agrícolas e Licenciatura em Química do Instituto Federal Catarinense (IFC) ao propor a elaboração de um memorial educacional. Por meio dessa prática, desejamos muito mais que uma escrita: desejamos a desnaturalização de condições que são perpetuadas, tendo em vista que estão encravadas nos corpos; uma dessas condições é uma existência a-historicizada, proveniente de relações de dominação inscritas nas relações sociais, nas coisas e corpos. Nesse aspecto, a função da história e, especificamente no caso da História da Educação, é despertar.
A elaboração do memorial educacional com esses grupos é um momento oportuno ofertado pela disciplina para que os estudantes se percebam como seres históricos, datados, constituídos por fatores não unicamente educacionais, mas políticos, culturais, econômicos, dentre outros. A proposta de pesquisar fatores tais como os mencionados, visa uma espécie de deslocamento que faça prescindir da necessidade de “invocar as evidências do bom senso […] a visão de si que o mundo social logra impor” (BOURDIEU, 2001, p. 221) rumo à constituição de uma consciência histórica de si, e sobre si em relação como mundo. A historicização, nesse aspecto, pode contribuir para a neutralização dos efeitos impostos pela naturalização e no caso desta proposta, ela se inicia com uma memória que não pertence de todo aos estudantes, mas sim àqueles que por eles eram responsáveis na infância. Estes são a fonte primeira do reconhecimento de si, até que as memórias sobre a trajetória educacional possam ser acionadas pelos próprios estudantes. A atividade busca simultaneamente o acionamento pelo estudantede memórias e a (re)produção de uma narrativa que o instituiu e o territorializou como sujeito na história.
As memórias educacionais individuais imbricadas com as recordações humanas, preservadas em fotografias, cartas, ritos de passagem, além de outros lugares nos quais onde se guarda e produz memória, associadas ao espaço e ao tempo tornam-se um dos recursos disponíveis como fontes e objetos de estudo para a produção do conhecimento da historiografia da história da educação. Assim sendo, relaciona-se a elaboração dessa proposta de trabalho,a ideia de mobilizar memórias educacionais dos indivíduos, pensando que “trata-se de disposições adquiridas pela experiência logo, variáveis segundo o lugar e o momento” (BOURDIEU, 2004, p. 21)².
Tendo em vista que cada agente possui um conjunto de crenças e valores adquiridos no seu espaço social ao longo de sua vida, se pressupõe que as memórias educacionais, e não só essas, narradas pelo estudante, são momentos selecionados, identificados, reconhecidos de modo consciente ou não, que constroem suas identidades, quem ele é de acordo com sua própria compreensão. Desta maneira, a proposta de disciplina de História da Educação visa a compreensão prática de um “habitus habitado pelo mundo que ele habita” (BOURDIEU, 2001, p. 173) e fazer aflorar a preocupação pelo mundo no qual o estudante intervém de maneira ativa, imediata, por seu envolvimento, suas tensões pelas quais ele constrói e dá sentido ao mundo.
Trata-se da objetivação da história: esta ação demanda a conversão em “história atuada e atuante quando é assumida por agentes que, por conta de seus investimentos anteriores, se mostram inclinados a se interessar por ela e dotados das aptidões necessárias para reativá-la” (BOURDIEU, 2001, p. 184)³. Na produção do memorial educacional assume-se a conjectura que cada um dos envoltos têm ímpares: trajetórias, memórias, saberes. Ou seja, um habitus que foi concomitante elaborado no aspecto social, mas também nos convívios com outros sujeitos, lugares e instituições. Convidamos à leitura desses memoriais com o objetivo de socializar histórias, ideias e trajetórias pessoais ambientadas nos estabelecimentos de ensino; o que nos impele a entender que as lembranças individuais sobre a escola nos remetem a entender também que o Brasil é diverso, díspar e heterogêneo.
Nas próximas semanas, a coluna Entrememórias publicará memoriais produzidos por estudantes dos cursos de Licenciatura em Ciências Agrícolas e Licenciatura em Química do IFC. Em consonância com a proposta da coluna, os relatos pessoais, de estudantes e professores, trazem à tona a memória dos caminhos que a educação e as práticas em sala de aula trilharam nas últimas décadas em nosso país. Relembrar nossas vivências como estudantes ou como docentes possibilita a construção de uma visão crítica e reflexiva sobre a educação brasileira. Contribuímos, assim, com os debates que visam fortalecer a formação para uma cidadania plena, pautada na aceitação do debate, na profundidade dos argumentos, na liberdade de expressão e no respeito à diversidade.Convidamos vocês anos acompanharem nessas memórias nas próximas edições do Pensar a Educação emPauta.
¹BOUDIEU, Pierre.MeditaçõesPascalianas. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
²BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.
³Os grifos são do autor.
*Professoras da disciplina de História da Educação nos cursos de Licenciatura em Ciências Agrícolas e Licenciatura em Química do Instituto Federal Catarinense – Campus Araquari/SC.
Imagem de destaque: Hennie Stander/Unsplash
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