Como descobri Paulo Freire ou “A liberdade embrulhada em papel de pão”

Luiz Carlos Castello Branco Rena

Ao iniciarmos o percurso que nos levará à celebração dos 100 anos de nascimento de Paulo Freire uma tarefa política; um compromisso histórico se impõe a todos e todas que abraçaram a educação como experiência libertadora. Reconhecer e reafirmar o valor da obra de Paulo Freire neste exato momento da história brasileira, em que as forças mais obscuras nos assombram, é um ato de coragem e rebeldia.

É preciso multiplicar as iniciativas de recuperação e preservação a memória daquele que colocou sua vida a serviço da “educação como prática da liberdade”. Cada educador que bebeu nas tantas fontes que Paulo Freire nos deixou deveria se sentir mobilizado a compartilhar sua relação com este homem e com este autor. Paulo Freire se tornou referência para milhares de homens e mulheres que abraçaram a educação como ofício e como causa. Nas trilhas da educação libertadora que educadores(as) e educandos(as) constroem de forma compartilhada e ao mesmo tempo pessoal e singular há sinais da presença do Mestre nos lembrando que as transformações do mundo que almejamos passa pela educação.

Escrever sobre a herança de Paulo Reglus Neves Freire (19/09/21-02/05/97) e sua imensurável contribuição para compreensão do homem e da educação do nosso tempo não é uma tarefa fácil. O faço como um ato de reverência a sua memória e de reconhecimento a alguém que durante meio século se deixou consumir pelo compromisso com a educação dos empobrecidos desse país e do mundo subdesenvolvido que o processo de globalização excluiu. O pensamento de Paulo Freire foi e continua sendo objeto de estudo em inúmeros países. Além de seus livros, há artigos, dissertações e teses em grande quantidade e em muitas línguas disponíveis nas universidades e centros de pesquisa.  Neste pequeno artigo pretendo compartilhar o meu olhar sobre o educador; o pensador. Neste esforço de transformar em texto o meu olhar me vi obrigado a rever o álbum da memória tentando localizar o momento em que me deparei pela primeira vez com o mestre Paulo Freire. Assim, peço licença ao leitor, e ofereço aqui a narrativa de dois fatos significativos da minha trajetória pessoal que se confundem com a história de Paulo Freire.

“Cursei o ensino médio na primeira turma de curso noturno do Colégio Pio XII de belo Horizonte entre os anos de 1975 e 1977. A ditadura militar, com tudo que ela significava, ainda se fazia fortemente presente no nosso cotidiano. Naquela época, o trabalho de formação religiosa no colégio era conduzido pela Irmã Mª das Graça Souza, que mais tarde se fez missionária em Angola. Território por onde Paulo Freire também transitou semeando a esperança. Em plena adolescência fui descobrindo a vida das comunidades da periferia e dos grupos de jovens e aprofundando, com o apoio da Ir. Graça, um projeto de vida que colocava no horizonte a possibilidade de me tornar educador. Numa noite de 1976, após as aulas, encontro Ir. Graça me aguardando na portaria do colégio portando um pequeno embrulho feito com papel de pão. Trocamos rapidamente algumas palavras sobre as atividades pastorais em andamento e ela me entregou o embrulho dizendo: Ponha isso no meio de suas coisas e só abra quando chegar em casa. Depois conversamos. Segui sua orientação e chegando em casa desfiz o pacote. No lugar do pão encontrei “Conscientização: teoria e prática da libertação”. Comecei a ler o livro enquanto jantava. Entrei madrugada a dentro lutando contra o sono e alimentando meu espírito e minha consciência com a experiência e as idéias daquele que mais tarde se tornaria referência fundamental na minha trajetória como militante e como profissional da educação básica e superior.

Descobri Paulo Freire embrulhado em papel de pão num ato de rebeldia e transgressão da ordem instituída. A mesma ordem que havia encarcerado por 70 dias e exilado por 16 anos um homem da estatura de Paulo Freire.  Subversivamente experimentei o gosto da liberdade, dos direitos à informação e a liberdade de pensamento num tempo da nossa história recente, marcado pela tirania e pela opressão.  Outros embrulhos em papel de pão continuaram a chegar: Gota D’água de Chico Buarque; documentos da Anistia Internacional, Cartas Pastorais de Pedro Casaldáliga; cartas de  Tito, Beto e Ivo frades dominicanos presos nos porões da ditadura.

Ao falar do legado de Paulo Freire a primeira palavra a ser dita é Liberdade. Toda sua obra disponível em dezenas de livros publicados e já traduzida para vários idiomas se constitui em uma resposta pedagógica às necessidades de transformação das estruturas geradoras da opressão, da dependência e da espoliação dos mais fracos.

Para Paulo Freire não há ação pedagógica neutra, politicamente descomprometida. O ato pedagógico, sendo mais que a mera transmissão de conteúdos é um gesto de participação política, de militância na reinvenção da cultura, do homem e de suas relações no esforço de superação de uma cultura de opressão. É preciso expurgar a verdade do opressor que reside na consciência do oprimido.

Ao sistematizar a denúncia da educação “bancária” que fossiliza o saber e o homem, Freire nos oferece uma concepção de educação compreendida como processo dinâmico e abrangente, inerente ao desenvolvimento da pessoa enquanto constituição do sujeito, ou seja, “a educação reproduz, assim, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o movimento dialético do processo histórico de produção do homem. Para o homem, produzir-se é conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia é antropologia.” (FREIRE,1987,13). Há um inevitável processo de socialização no qual o indivíduo toma consciência de si e dos outros viabilizando seu desenvolvimento pessoal e sua inserção em determinada sociedade que se concretiza através de práticas educativas diversificadas. Portanto, trata-se de uma consciência situada historicamente e enraizada no mundo, como afirma Paulo Freire: “As consciências não se encontram no vazio de si mesmas, pois a consciência é sempre, radicalmente, consciência do mundo.” (FREIRE, 1987,15).

Na luta contra a alienação de si próprio e no esforço de constituir-se como consciência entra em cena a “palavra” como ferramenta, como instrumento de individuação e de cumplicidade. A palavra é ponto de partida no método criado por Paulo Freire e com o qual se alfabetizaram 300 pessoas em 45 dias. Na experiência dos Círculos de Cultura a palavra enxada pronunciada pelo lavrador é assumida como elemento de seu universo simbólico e reproduzida em imagens e graficamente representada. Esse distanciamento é que lhe permite admirar, contemplar sua existência. Em certa ocasião uma mulher participante de um dos Círculos de Cultura assim se expressou: “Gosto de discutir sobre isso porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora sim, observo como vivo.”  Permitir ao sujeito dizer sua palavra e deixar-se envolver por ela e por seu contexto: “alfabetizar-se é aprender a ler sua palavra escrita em que a cultura se diz e dizendo-se criticamente deixa de ser repetição intemporal do que passou…”

Na introdução de “Pedagogia do Oprimido”, principal obra de Paulo Freire, o Prof. Ernani Fiori comenta: “A palavra, porque lugar do encontro e do reconhecimento das consciências, também o é do reencontro e do reconhecimento de si.” Nessa perspectiva a palavra não é uma convenção arbitrária que cumpre a tarefa de designar as coisas e os fatos. Mas, é algo vivo que se confunde com a própria existência de quem a diz ou escreve.

“Essa sintonia e coerência entre a palavra e aquele que a diz foi o que encontrei numa manhã do inverno de 1981, nos jardins da Reitoria da UFMG. Como estudante de pedagogia da Faculdade de Educação estava lá, no meio de algumas dezenas de alunos de diversos cursos para uma aula diferente com um professor que acabava de retornar do exílio. Passamos algumas horas sentados ao chão, sem despregar os olhos daquele que ousou ser parceiro dos excluídos e que mesmo no exílio não se omitiu de processos políticos importantes desencadeados no Chile, no Peru e na Nicarágua, em Angola e Moçambique, no Guiné Bissau e na Tanzânia. Estávamos vivendo um outro tempo e Paulo Freire já podia compartilhar sua sabedoria e nos dizer sua palavra desembrulhada, clara, lúcida, engajada e comprometida com a reconstrução da frágil democracia brasileira.” Vinte e oito anos depois refaço sem constrangimento o compromisso que fiz naquela manhã: quando crescer quero ser como esse “ educador que já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.” (FREIRE, 1987,68).

 

Bibliografia:

FREIRE, Paulo R.N. Pedagogia do Oprimido.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo R.N. Conscientização; teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Morais, 1980.

PEDAGOGIA RADICAL: o legado de Paulo Freire. Pátio Revista Pedagógica, Ano I, nº 2, ago/out-1997.


Imagem de destaque: Capa do Livro Conscientização. Paulo Freire. Editora Moraes https://zp-pdl.com/get-a-next-business-day-payday-loan.php https://zp-pdl.com/fast-and-easy-payday-loans-online.php www.zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/asthma-medicine-europe.html

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