Combater a agenda antidemocrática (e não se deixar enredar em suas tramas)

Alexandre Fernandez Vaz

Jamais pensei que viveria para testemunhar uma manifestação pública de apoio a um presidente da república em que os participantes entoassem, além das costumeiras odes ao autoritarismo, cânticos em defesa de um medicamento. Em um país com formação escolar tão deficitária, não deixa de chamar a atenção que se grite por uma droga como solução para uma doença. Ou, ao contrário, talvez seja justamente esse défice que ajude a entender tal fenômeno. Que uma droga e sua administração contra um vírus pandêmico sejam elevadas (ou rebaixadas, neste caso) à disputa política, é mostra que o ambiente de debate entre projetos antagonistas se esfarelou a ponto de não se reconhecer a democracia como pedra angular da vida contemporânea. Ou seja, a democracia, para muitos de nós, é apenas uma opção, nem sempre a melhor porque afeita à desordem e à confusão. Que as Forças Armadas venham a público semana atrás de semana para dizer que não haverá golpe é, além de assustador, mostra cabal de que a herança ditatorial nunca foi desfeita.

A cloroquina tem sido anunciada por Jair Messias Bolsonaro como uma arma fundamental para o combate ao Covid-19 desde o início do tratamento. Estamos em guerra, diz ele. Segundo a comunidade científica, o medicamento pode ser aplicado aos pacientes sob certas circunstâncias, ao mesmo tempo em que também se tem conhecimento de que não há comprovação científica de sua eficácia. Além do mais, um quadro clínico pode ser agravado pela administração da droga. Já houve uma seguidora de Messias que declarou haver sido curada pela ingestão de hidroxicloroquina, assim como outros ao seu redor – ela teria, aliás, recebido a droga de um colega. Segundo disse, o que vale é a opinião da maioria, então se muitos acham que foram curados dessa forma, está decidida a eficácia da subministração do medicamento. Chegaremos ao dia em que haverá uma votação para saber se há ou não vírus e bactérias, se o mar existe ou se Tiradentes realmente morreu?

Essas posições encontram eco e mesmo confirmação na postura do Presidente que, segundo afirma, foi eleito para tomar as decisões que lhe pareçam melhor. Deveria ao menos reconhecer que faz isso mesmo que elas firam a Constituição, que tentem desequilibrar os poderes constituídos, que joguem as pessoas à própria sorte na exposição à pandemia. Bem, considerando que ele se vê como a voz do povo brasileiro e a encarnação da Carta Constitucional, não é de se estranhar.

Não, o Presidente da República não é um soberano e as urnas não lhe dão o direito da ação sem freios e ponderações, isenta de oposição. Quando Bolsonaro pousa de vítima do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, que não permitiriam que ele governasse e fizesse os grandes atos que mudariam o Brasil para melhor, está dizendo que a democracia é para ele insuportável e que apenas com o poder total em suas mãos seria possível colocar as coisas em ordem. Sabemos a qual ordem ele se refere, já que, apesar dos ditos e desmentidos frequentes, não se pode dizer que Jair ocultou suas ideias ao longo das últimas três décadas e tanto. Quando da votação de abertura de processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, na Câmara Federal, em 2016, a deprimente sessão teve como fundo poço o voto do então deputado pelo Rio de Janeiro. Como todos lembram, ele o dedicou ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (“o terror de Dilma Rousseff) e disse que a vitória naquele momento (a do golpe parlamentar) era a nova confirmação da conquista de 1964 (a do golpe civil-militar).

É assim que o país vem sendo governado: sob uma atmosfera de guerra. Esta não é contra o Covid-19, afinal não se trata de um sujeito que deliberadamente nos ataca, mas de um vírus que provoca uma doença que se espalha em pandemia. Não é com um sem-número de militares no Ministério, mas com políticas enfáticas de saúde pública, sustentabilidade e inclusão social que suas causas e consequências podem ser enfrentadas. O clima de guerra permanente impetrado por Bolsonaro nos leva à absurda situação nos colocarmos com opiniões divergentes sobre isolamento social, uso de drogas terapêuticas, gravidade da doença, questões que não são de outra ordem que não da ciência. O Brasil precisa sair dessa agenda caótica promovida por um presidente contumaz gerador de intrigas, notícias falsas e afirmações bombásticas sem comprovação factual.

Apesar de tudo (e esse tudo não foi pouco), considero que todos temos responsabilidade por termos chegado a estágio tão baixo de nossa história republicana. Não fomos capazes de consolidar a democracia como valor universal, não soubemos entender o próprio país, fizemos apostas erradas que dividiram as forças democráticas em momentos importantes de disputa política e eleitoral. Esquecemos o tremendo potencial autoritário da nação. Aprendamos com isso e deixemos de lado as simples palavras-de-ordem, nem sempre tão diferentes das dos que gritam por cloroquina. Renunciemos ao culto à personalidade. A democracia precisa de educação para a vida pública, o que demanda paixão política, mas também um tanto considerável de razão e de consciência histórica. Tentemos.


Imagem de destaque: Antonio Cruz / Agência Brasil

 

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