CL – Nº 75 -27/03/2015

Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”

Ano III – Edição 075 / sexta-feira, 27 de março de 2015

Memórias da escola 1

Cleide Maciel

Na mão esquerda, o caderno de plano de aula; na direita, o giz: estou de frente para o quadro negro transcrevendo um exercício. Gastara um bom tempo nessa preparação! Tratava-se da minha primeira turma, meu “primeiro emprego”! Precisava impressionar a diretora, a inspetora técnica, minhas colegas professoras no Grupo Escolar, todas já nomeadas!

Às minhas costas, um leve burburinho. Ouço mas não reajo. Continuo a escrever; recomendo às crianças que copiem. O ruído diminui, mas não por muito tempo. E continuamos nesse jogo: as crianças conversam baixinho enquanto escrevo no quadro. Sem me virar, peço a elas que prestem atenção para “copiarem certinho”. Não me lembro ao certo, da duração desse “jogo”: se um semana, se quinze dias. A memória me diz que isso não durou muito tempo. A verdade é que, dessa “etapa”, passamos para uma outra em que as crianças aumentaram as suas vozes.

 De início, minha posição permaneceu a mesma. De costas ainda, dizia “silêncio”, sibilava entredentes a onomatopeia correspondente, parava de escrever… E o tom das vozes só aumentava! Sinto-me irritada; um espelho talvez mostrasse meu rosto ruborizado… As crianças reclamam de um colega que as perturba. Não presto muita atenção. O “clamor reiterado” – o Roberto puxou meu cabelo, o Roberto rasgou meu caderno, o Roberto pegou o meu lápis… o Roberto está pulando nas carteiras!!! Pulando nas carteiras??? Imediatamente me viro de frente para a turma. Foi como se tivesse caído um raio: todo mundo calado, em seus lugares, as carteiras todas enfileiradas… Até hoje não me esqueço desse momento: não compreendia nada do que se passava! Hoje sei que aqueles meninos e meninas (mesmo os novatos) já conheciam a escola e eu não.

Essa turma e esse aluno constituem minhas primeiras grandes lições aprendidas na prática. Nos finais dos anos 1960, as turmas de primeira série do curso primário eram organizadas tomando-se como referência os resultados de um teste aplicado nas primeiras semanas de aula, bem como o nível socioeconômico dos pais (fundamentalmente, sua ocupação). Minha turma de 1ª série havia sido classificada como Pl (de Preliminar; a primeira turma era a An1). Alguns eram alunos novatos, não tinham cursado o jardim de infância e haviam recebido as notas mais baixas no teste de classificação. Outros, ou já traziam um ano de repetência, ou contabilizavam os índices de evasão. Suas idades variavam entre 7 e 8 anos. De acordo com a orientação que recebi, não se colocava para eles a expectativa de aprovação ao fim do ano letivo. Bastaria que aprendessem a ler palavras formadas por sílabas simples – no padrão CV, consoante vogal –, para que meu trabalho fosse considerado satisfatório…

Os alunos não eram bobos! “Sabiam” da profecia que marcava o seu destino na escolarização. E reagiam, na “mesma moeda”: não ficavam passivos diante das mesmas aulas que já haviam “visto” no ano anterior, para uns, sob a regência da professora mais inexperiente da escola, recém saída do curso normal, para todos.

Na Escola Normal em que estudei, sob a autoridade e ministério das freiras vicentinas, o ensino da leitura e da escrita – sempre para crianças –, fora submetido à “hegemonia” do método global de contos. Considerado como O método de ensino, fora dele, não havia “salvação” para as crianças em fase de alfabetização. Eu conhecia de “cor e salteado” todas as etapas desse método. Método silábico? Método fônico ou fonético? Cartilhas? Coisas do passado, “tradicionais”, indicativo de professora despreparada, desatualizada…

Não me lembro do meu estágio…, talvez nem tenha feito estágio, não sei dizer. Mas as crianças que me foram “apresentadas” durante a formação eram uniformizadas, bem alimentadas, carregavam pastas individuais contendo todo o material necessário aos estudos. Crianças que levantavam a mão para pedir a palavra à professora, que diziam: “professora, a senhora…” e não, “ô dona!”. Crianças que sabiam cuidar de seus cadernos, sabiam usar a borracha, não deixavam as pontas dos cadernos virarem “orelhas de burro”. Meninos e meninas “encantadores”!

O que encontro no Grupo Escolar? Crianças sem banho, que chegavam do recreio muito suadas – o que potencializava a falta do banho –, sem lápis e borracha e por isso, apagavam seus erros esfregando a ponta de um dedo molhado no cuspe – o que deixava seus cadernos empretejados… Aliás, os cadernos eram reveladores: sem capas, cheios de orelhas de burro, as lições todas misturadas… Quando muito, tinham dois cadernos: um de aula e outro para dever de casa.  Mas, nem todos.

O Roberto encarnava tudo isso, e mais alguma coisa. Não me esqueço dele (por onde será que ele anda?). Baixinho, atarracadinho, moreno, cabelos bem negros e lisos, olhos de jabuticaba. Se não fossem os olhos arredondados, pensaria na ascendência indígena. Mas se parecia mais um menino indiano. Eu olhava para ele, via aqueles olhos “meigos, doces” e pensava: não se engane, é um capetinha!!!

Eu não sabia o que estava fazendo ao tentar alfabetizar as crianças dessa minha primeira turma. Deram-me uma cartilha e eu não sabia nada de método silábico. As crianças percebiam isso e o Roberto, mais que todas! Minhas aulas deviam ser muito chatas para elas… Muitos anos depois, li Educação como prática da liberdade, do Paulo Freire (5 ed, Editora Paz e Terra, 1975). Li sofregamente, enquanto pensava nesses meus alunos. Senti muita vontade de voltar no tempo, e começar tudo de novo com eles…

Como no final dos anos 1960, ainda não havia para mim Paulo Freire (parafraseando Caetano Veloso), fui “quebrar a minha cabeça” e buscar ajuda com uma professora já aposentada. Não me recordo se algum aluno foi aprovado, ao fim do ano. Lembro-me que entre os reprovados, muitos já sabiam ler palavras formadas por sílabas simples: o Roberto não estava entre eles!

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